Você sabia que a epigenética mostra que o estresse crônico pode impactar não só sua saúde, mas também a de seus filhos e netos? Estudos recentes publicados na revista Molecular Psychiatry revelam que o estresse pode alterar o material genético nos espermatozoides, afetando o comportamento das futuras gerações. Mas como isso é possível?
O Que é Epigenética e Como Ela Funciona?
A epigenética é uma área da biologia que estuda como fatores externos, como o estresse, a dieta ou o ambiente em que vivemos, podem influenciar a maneira como nossos genes se manifestam sem alterar a sequência de DNA em si.
Pense no seu DNA como um livro de receitas gigantesco que contém todas as instruções para fazer tudo o que seu corpo precisa. A “expressão dos genes” é como usar essas receitas. Assim, dependendo de quais receitas (genes) são lidas (expressas) e quando elas são lidas, seu corpo pode produzir diferentes proteínas e funcionar de maneiras diferentes. Por exemplo, você pode ter genes que controlam o crescimento do cabelo. Esses genes determinam se seu cabelo vai crescer rápido ou devagar, ou se ele vai ser liso ou cacheado.
A sequência de DNA é a ordem específica das “letras” que compõem seus genes. Alterar a sequência de DNA seria como mudar as letras ou palavras no seu livro de receitas. No entanto, a epigenética não muda essas letras. Em vez disso, ela altera quais receitas ler e usar, e define quando isso acontece.
Uma das maneiras pelas quais essas mudanças ocorrem é através de moléculas chamadas RNAs não codificantes. Esses RNAs são como pequenos ajudantes que podem ligar ou desligar certas receitas no livro de receitas do DNA. Imagine que você tem um livro de receitas e, em cada página, você tem notas adesivas dizendo “usar essa receita” ou “não usar essa receita”. Dessa forma, os RNAs não codificantes funcionam como essas notas adesivas, ajudando a decidir quais receitas devem ser seguidas em um dado momento.
Exemplos de Modificações Epigenéticas
Um exemplo fácil de entender é o caso das abelhas. As abelhas operárias e a abelha rainha têm exatamente o mesmo DNA. No entanto, as abelhas operárias alimenta a abelha rainha com uma substância especial chamada geléia real, que muda a expressão dos genes dela sem alterar a sequência de DNA. Isso permite que ela se desenvolva de maneira diferente das operárias.
Estudo Explora a Epigenética do Estresse
Cientistas do Instituto Florey de Neurociências e Saúde Mental, na Universidade de Melbourne, investigaram como o estresse paternal antes da concepção pode influenciar o comportamento dos filhos. Eles descobriram que altos níveis de hormônios do estresse alteram os RNAs não codificantes longos nos espermatozoides. Vamos entender abaixo o que eles fizeram.
Para simular o estresse crônico, os pesquisadores administraram corticosterona (um hormônio do estresse) em ratos machos por quatro semanas. O estresse crônico é uma resposta prolongada do corpo a fatores estressantes, que pode durar semanas, meses ou até anos, então causando problemas de saúde como ansiedade, depressão e problemas cardíacos. Diferente do estresse agudo, que é uma reação imediata a uma situação específica, o estresse crônico ocorre quando uma pessoa está constantemente exposta a situações que desencadeiam a resposta de “luta ou fuga” do corpo.
Para replicar essa condição em ratos, os pesquisadores adicionaram corticosterona na água que os ratos bebiam, assim garantindo que eles consumissem o hormônio regularmente durante quatro semanas. Após esse período, os pesquisadores coletaram os espermatozoides dos ratos para estudar os RNAs não codificantes longos. Essas moléculas ajudam a regular a expressão dos genes sem alterar a sequência do DNA, assim funcionando como as notas adesivas acima mencionadas. Dessa forma, decidindo quais “receitas” genéticas seguir em um dado momento.
Depois de analisar essas moléculas, os pesquisadores injetaram os RNAs não codificantes longos alterados em ovos fertilizados. Os ovos fertilizados são o resultado da união de um espermatozoide com um óvulo, semelhante a plantar uma semente em um solo fértil para iniciar o crescimento de uma nova planta. Isso permitiu que os pesquisadores observassem como essas mudanças genéticas afetavam o desenvolvimento e o comportamento dos futuros filhotes.
Explicando conceitos
Os RNAs não codificantes longos (lncRNAs, do inglês “long non-coding RNAs”) são um tipo especial de RNA que não codifica proteínas. Enquanto muitos RNAs atuam como “mensageiros” que levam instruções do DNA para produzir proteínas, os lncRNAs têm funções diferentes e igualmente importantes na regulação dos genes.
Os lncRNAs são moléculas de RNA que têm mais de 200 nucleotídeos de comprimento, o que os diferencia dos RNAs não codificantes pequenos, que são menores. Eles desempenham uma variedade de funções essenciais nas células, incluindo:
Regulação da Expressão Gênica: Eles podem ligar ou desligar genes, controlando quais genes são ativos em diferentes momentos e em diferentes partes do corpo.
Modificação de Cromatina: Os lncRNAs podem influenciar a estrutura da cromatina (a forma compacta do DNA), facilitando ou dificultando o acesso dos mecanismos celulares aos genes.
Interação com Outras Moléculas de RNA: Eles podem se ligar a outros RNAs, afetando sua estabilidade e a tradução para proteínas.
Guias e Moldes: Alguns lncRNAs atuam como guias, levando proteínas reguladoras a locais específicos no genoma, ou como moldes, ajudando na modificação de outras moléculas de RNA.
Um exemplo prático de como os lncRNAs funcionam pode ser visto em estudos de desenvolvimento e doenças. Em algumas doenças genéticas e tipos de câncer, os lncRNAs desempenham papéis críticos, ajudando a controlar a proliferação celular e a resposta a danos no DNA.
Epigenética Revela Resultados Surpreendentes
Os resultados foram surpreendentes: os descendentes apresentaram comportamentos relacionados à ansiedade e depressão, além de alterações no peso corporal. Em testes de comportamento, os filhotes dos ratos que receberam corticosterona mostraram-se mais ansiosos e deprimidos. Além das mudanças comportamentais, os filhotes também apresentaram um aumento significativo no peso corporal em comparação aos filhotes dos ratos do grupo de controle, ou seja, aqueles que não receberam corticosterona. Este aumento de peso pode indicar que as alterações nos RNAs não codificantes longos influenciam não apenas o comportamento, mas também aspectos do metabolismo e crescimento físico.
O Que Isso Significa para Nós?
Embora os pesquisadores tenha realizado o estudo em ratos, ele levanta questões importantes sobre a herança epigenética em humanos. Se confirmarmos os mesmos mecanismos em estudos com humanos, isso pode mudar nossa compreensão sobre a transmissão de distúrbios mentais e a importância da saúde mental dos pais antes da concepção. Já temos evidências robustas que a dieta paterna afeta negativamente a saúde metabólica dos filhos (leia mais clicando aqui). Então, está cada vez mais claro a importância dos cuidados com a saúde para gerar uma prole saudável em humanos.
Estas descobertas enfatizam a necessidade de gerenciarmos o estresse de maneira eficaz, não apenas para nossa saúde, mas também para o bem-estar das futuras gerações. Enquanto aguardamos mais pesquisas em humanos, é crucial adotar hábitos saudáveis e buscar apoio psicológico quando necessário, garantindo um futuro mais saudável para todos.