A criatividade no autismo tem sido objeto de fascĂnio tanto em pesquisas quanto na mĂdia. HistĂłrias de autistas com talentos extraordinĂĄrios e o apelo crescente por abordagens pedagĂłgicas baseadas em pontos fortes popularizaram a ideia de que pessoas autistas seriam, em geral, mais criativas. No entanto, um estudo publicado no Journal of Psychopathology and Clinical Science propĂ”e uma leitura mais complexa desse fenĂŽmeno. Assim, sugerindo que a criatividade elevada em indivĂduos autistas pode, na verdade, estar associada ao TDAH â transtorno frequentemente presente junto ao autismo â e nĂŁo ao autismo isoladamente.
Os pesquisadores buscaram corrigir limitaçÔes comuns de estudos anteriores, que muitas vezes se baseavam em amostras pequenas ou avaliavam traços autistas em populaçÔes sem diagnĂłstico clĂnico. Ao reunir 352 adultos britĂąnicos, metade autistas e metade nĂŁo autistas, e controlar variĂĄveis como capacidade cognitiva, idade e sexo, o estudo buscou isolar o que realmente diferencia a criatividade nesses grupos. Os pesquisadores aplicaram tarefas de pensamento divergente, questionĂĄrios sobre conquistas e comportamentos criativos, alĂ©m de avaliaçÔes sobre personalidade e autopercepção criativa.
O resultado surpreende quem espera uma vantagem criativa universal entre autistas: tanto autistas quanto nĂŁo autistas apresentaram desempenho semelhante na geração de ideias originais e flexĂveis. Quando diferenças surgiram em realizaçÔes criativas do cotidiano, o responsĂĄvel nĂŁo era o autismo, mas sim a presença concomitante de TDAH â quadro associado a impulsividade, sensibilidade Ă recompensa e pensamento flexĂvel.
Como o Estudo Desvenda os Caminhos da Criatividade em Neurodivergentes
A pesquisa utilizou o clĂĄssico teste de pensamento divergente, que desafia os participantes a listar o mĂĄximo de usos possĂveis para um objeto comum, como um tijolo. Esse tipo de tarefa Ă© reconhecido na psicologia como mĂ©trica confiĂĄvel de criatividade fluente e original. Paralelamente, os autores aplicaram instrumentos validados de autorrelato para medir conquistas criativas em ĂĄreas como arte, mĂșsica e escrita. Ademais, tambĂ©m mapearam comportamentos criativos no Ășltimo ano e traços de personalidade ligados Ă criatividade.
O dado intrigante do estudo Ă© que, apesar de autistas relatarem mais feitos criativos e comportamentos do que seus pares nĂŁo autistas, essa diferença desaparecia quando os pesquisadores consideravam o diagnĂłstico de TDAH. A anĂĄlise estatĂstica confirmou: a criatividade elevada estava ligada Ă presença de TDAH, nĂŁo ao autismo. Isso se manteve em todos os mĂ©todos de anĂĄlise â categĂłricos (diagnĂłstico clĂnico) e dimensionais (nĂveis de traços de TDAH).
AlĂ©m disso, quando analisados isoladamente, traços autistas nĂŁo previam maior criatividade. Em certos aspectos, atĂ© se associavam a uma autopercepção criativa mais baixa, sugerindo desafios de autoestima e avaliação pessoal frequentes nesse pĂșblico. Esse achado propĂ”e que os profissionais personalizem as intervençÔes voltadas Ă valorização dos pontos fortes em autistas, considerando variaçÔes individuais e possĂveis comorbidades
ImplicaçÔes Para Educação, ClĂnica e o Futuro Das Pesquisas Sobre Criatividade no Autismo
Os resultados lançam luz sobre uma questĂŁo central: Ă© preciso cuidado ao generalizar a criatividade como traço tĂpico do autismo. Caso ela seja mais prevalente apenas em autistas com TDAH, estratĂ©gias educacionais ou terapĂȘuticas que partem desse pressuposto podem falhar ou criar expectativas irrealistas. O estudo recomenda que programas voltados a estimular a criatividade em autistas sejam mais individualizados e atentos Ă presença de outros diagnĂłsticos, especialmente TDAH, que Ă© frequentemente subdiagnosticado.
A anĂĄlise crĂtica dos autores tambĂ©m aponta potenciais limitaçÔes do estudo. Os diagnĂłsticos foram autorrelatados, sem confirmação clĂnica independente. As tarefas criativas focaram em criatividade verbal, nĂŁo abrangendo outras formas de expressĂŁo que poderiam ser relevantes em diferentes perfis autistas. AlĂ©m disso, os pesquisadores tambĂ©m nĂŁo incluĂram IndivĂduos com deficiĂȘncia intelectual, o que restringe a aplicação dos achados a todo o espectro do autismo.
O trabalho abre caminho para novas perguntas: serĂĄ que, em contextos especĂficos â como ĂĄreas de interesse restrito, frequentes no autismo â poderiam emergir padrĂ”es criativos distintos? Como a criatividade se manifesta em diferentes estĂĄgios do desenvolvimento ou culturas? E, principalmente, quais mecanismos cognitivos e motivacionais fazem do TDAH um propulsor da criatividade, tanto em autistas quanto em nĂŁo autistas? Explorar essas variĂĄveis pode refinar intervençÔes e polĂticas de inclusĂŁo para pĂșblicos neurodivergentes.
O artigo, âEnhanced Creativity in Autism Is Due to Co-Occurring Attention-Deficit/Hyperactivity Disorderâ, de Emily C. Taylor, MaĆgorzata A. GocĆowska, Mitchell J. Callan e Lucy A. Livingston“, reforça a importĂąncia de se pensar a neurodivergĂȘncia de forma complexa, sem simplificaçÔes, e estimula debates sobre força, potencial e singularidade no espectro autista.