Não é exagero dizer que as memórias silenciosas de uma infância imprevisível moldam tudo. Até mesmo… Deus.
Um estudo ousado publicado na Psychological Reports, conduzido por Heather M. Maranges e Frank D. Fincham, colocou o dedo em uma ferida raramente exposta: pessoas que cresceram em lares imprevisíveis tendem a desenvolver apegos inseguros a Deus. Isso mesmo. Não se trata apenas de como nos relacionamos com o mundo, mas de como nos conectamos com o divino. E o mais grave? Isso pode impedir que essas pessoas se sintam verdadeiramente perdoadas por Deus. Assim, tornando uma dor que se arrasta silenciosamente pela vida adulta.
Com um esforço amostral de mais de 850 jovens universitários crentes em uma força superior, os pesquisadores dividiram a investigação em dois estudos estatisticamente robustos. O primeiro, com 441 participantes, revelou que pessoas expostas a ambientes caóticos na infância formam vínculos evitativos com Deus. Portanto, percebem o divino como distante, indiferente, impessoal. E isso destrói, peça por peça, a capacidade de sentir-se perdoado — um pilar central da fé de milhões.
Quando a Fé Vira Refúgio Que Rejeita
O segundo estudo aprofunda ainda mais o abismo. Com mais 417 participantes, os autores analisaram a forma como a fé é usada para lidar com o sofrimento. E os resultados são, no mínimo, inquietantes: quem viveu uma infância imprevisível e instável tende a usar menos os recursos positivos da religiosidade, como oração, acolhimento e entrega. No lugar disso, experimenta um tipo de espiritualidade tortuosa. Uma experiência marcada por culpa, punição e afastamento divino.
O método usado, conhecido como path analysis, mapeou as conexões emocionais como num quebra-cabeça psicológico. E uma peça-chave se destacou: o apego evitativo a Deus. Ele não apenas bloqueia o sentimento de perdão, mas desarticula o uso saudável da fé como estratégia de enfrentamento. Funciona como tentar se agarrar a um salva-vidas que nunca responde quando você grita por socorro.
Outro dado surpreendente: pessoas moderadamente evitativas em relação a Deus sofrem mais do que aquelas extremamente distantes ou extremamente apegadas. Um paradoxo cruel. Nem perto o bastante para confiar, nem longe o bastante para se proteger. Uma espiritualidade em estado de suspensão — e dor.
A Teoria do Apego Encontrou o Divino (e Ele Está Assustadoramente Silencioso)
A grande sacada do estudo está em conectar a Teoria do Apego — tradicionalmente usada para entender relações humanas — com o vínculo espiritual com Deus. O estudo propõe que o divino se torna, para muitos, uma extensão simbólica dos cuidadores primários. E se esses cuidadores foram imprevisíveis, ausentes ou violentos, o sagrado pode parecer igualmente inacessível.
Essa ideia, embora controversa, é embasada em décadas de ciência psicológica. E levanta questões desconfortáveis! Pois, será que nossas igrejas estão cheias de pessoas que não conseguem se sentir amadas por Deus porque nunca foram amadas de forma consistente por ninguém?
O estudo não apenas aponta para esse dilema como propõe uma ponte: o sentimento de perdão divino. Essa emoção, negligenciada em pesquisas anteriores, parece atuar como elo entre infância, apego espiritual e bem-estar. Em outras palavras, sentir-se perdoado por Deus pode curar feridas que começaram muito antes da fé surgir.
Limitações do Estudo Sobre as Consequências de uma Infância Imprevisível
É claro, o estudo tem limitações. A amostra era composta majoritariamente por mulheres brancas, cristãs e universitárias. Portanto, precisamos de cautela na generalização. Além disso, fatores como imagem de Deus (amoroso ou severo), participação em comunidades religiosas e status socioeconômico atual não foram considerados. E sim, a pesquisa é transversal, não longitudinal.
Mas ignorar esses achados por conta disso seria um erro estratégico — e ético. Porque mesmo com suas lacunas, o estudo revela algo profundo: a fé pode ser uma via de cura… ou de perpetuação do trauma. E a linha que separa uma da outra pode ser a forma como nos sentimos vistos e acolhidos pelo divino.
A provocação final é inevitável: e se, em vez de rezar mais, a chave para reconectar-se com o divino fosse revisitar a própria infância? E se a teologia da salvação passasse, antes de tudo, por uma psicologia do apego?