Um estudo recente publicado na Neuropsychologia trouxe uma abordagem inédita sobre o impacto do treinamento esportivo na função cerebral de atletas de elite. Ao utilizar a ressonância magnética funcional (fMRI), os pesquisadores investigaram como o cérebro de atletas de esportes de “habilidade fechada”, como remo e natação sincronizada, se comporta ao realizar tarefas cognitivas complexas. O foco foi em duas funções cruciais: a memória de trabalho e a inibição de ação.
Esportes de “habilidade fechada” são aqueles praticados em ambientes previsíveis e controlados, onde as condições externas permanecem estáveis, como o remo, a natação sincronizada e a ginástica artística. Nessas modalidades, os atletas realizam movimentos repetitivos e treinam de forma meticulosa para aperfeiçoar a precisão e a consistência de suas habilidades. Diferente dos esportes de “habilidade aberta”, como futebol, basquete, vôlei, tênis e rugby, que exigem rápidas adaptações a mudanças constantes, os esportes de habilidade fechada demandam foco contínuo e controle, assim, ajudando a desenvolver padrões cerebrais específicos para otimizar o desempenho.
Esses atletas são submetidos a rotinas exaustivas e repetitivas, treinando por anos em ambientes controlados. O estudo recrutou 14 atletas olímpicos em disciplinas de remo, todos campeões nacionais ou competidores internacionais. Então, os pesquisadores compararam com 14 não-atletas, cuidadosamente emparelhados em termos de idade, sexo e nível educacional. Todos os participantes foram submetidos a exames de fMRI enquanto completavam duas tarefas cognitivas específicas: uma de memória de trabalho e outra de inibição de ação. Esse desenho experimental permitiu aos pesquisadores observar como o cérebro desses atletas se adapta e responde a diferentes demandas cognitivas. Assim, revelando uma reconfiguração cerebral em resposta à prática esportiva intensiva.
Tipos de Memória
A memória de trabalho refere-se à capacidade de manter e manipular temporariamente informações em mente para realizar tarefas, como lembrar instruções ou resolver problemas. Já a inibição de ação é a habilidade de controlar impulsos e evitar uma resposta automática quando necessário, como parar uma ação já iniciada ou resistir a uma distração. Ambas são funções executivas importantes para o controle e regulação do comportamento. Para entender mais sobre como funcionam nossas memórias, acesse nosso post que aborda esse tema.
Avaliando o Impacto do Treinamento no Cérebro
O estudo se destacou não apenas pela escolha dos participantes, mas também pela precisão metodológica. Os atletas foram selecionados devido ao seu histórico de competição em alto nível. Em média, tinham mais de 10 anos de treinamento rigoroso e participação regular em competições internacionais. Esse esforço amostral foi crucial para garantir que os resultados representassem o impacto da prática esportiva a longo prazo e de forma contínua, e não apenas o efeito de treinos ocasionais.
Os pesquisadores utilizaram a metodologia fMRI para mapear a atividade cerebral em tempo real. Dessa forma, a utilizaram para monitorar o fluxo sanguíneo nas diferentes regiões do cérebro enquanto os participantes realizavam as tarefas. Durante a tarefa de memória de trabalho, os participantes visualizavam conjuntos de retângulos em uma tela. Após um breve intervalo, eles deveriam indicar se um dos retângulos havia mudado de orientação. Esta tarefa era projetada para medir a memória visuo-espacial, uma habilidade cognitiva crucial para esportes que dependem da precisão e coordenação motora.
A segunda tarefa, de inibição de ação, exigia que os participantes respondessem rapidamente a um estímulo. Por exemplo, identificar se um rosto era masculino ou feminino. No entanto, quando um sinal de parada era apresentado, os participantes eram forçados a inibir sua resposta. Assim, essa tarefa testou a capacidade de suprimir uma reação automática, uma função cognitiva frequentemente associada à tomada de decisões sob pressão.
As Diferenças na Ativação Cerebral Entre Atletas Com Treinamento e Não-Atletas
Os resultados comportamentais não mostraram grandes diferenças em termos de precisão ou tempo de reação entre os atletas e os não-atletas. No entanto, foi na análise da atividade cerebral que os pesquisadores encontraram um quadro mais complexo e revelador. Durante a tarefa de memória de trabalho, os atletas de esportes de habilidade fechada apresentaram uma ativação significativamente maior em regiões como o giro fusiforme e o lóbulo parietal superior. Essas áreas representam partes essenciais do cérebro para processar informações visuais e espaciais. Assim, sugerindo que os atletas têm uma capacidade aumentada de lidar com tarefas que exigem foco sustentado em detalhes estáveis.
Em contraste, os não-atletas mostraram maior ativação nas áreas frontais do cérebro, particularmente associadas ao monitoramento de situações em mudança. Essa diferença de ativação sugere que o treinamento esportivo de habilidade fechada, caracterizado pela repetição constante e precisão, desenvolve circuitos neurais especializados em manter a atenção focada. Por outro lado, os não-atletas dependem mais da sua capacidade de adaptação às mudanças.
A análise da tarefa de inibição de ação revelou um padrão semelhante. Os atletas mostraram uma maior ativação no córtex cingulado posterior e no precuneus, regiões responsáveis pelo foco interno e manutenção da atenção, enquanto os não-atletas apresentaram maior ativação nas áreas frontais. Dessa forma, sugerindo que estavam mais engajados em controlar suas respostas impulsivas.
O Impacto a Longo Prazo do Treinamento Esportivo no Cérebro
Os resultados deste estudo apontam para uma conclusão clara: o esporte não apenas transforma o corpo, mas também o cérebro. Ao treinar em ambientes estáveis e previsíveis, como nos esportes de habilidade fechada, os atletas desenvolvem circuitos neurais especializados em tarefas que exigem foco e repetição. A grande questão que permanece é como esses benefícios cerebrais se traduzem a longo prazo. Atletas de elite terão vantagens cognitivas ao envelhecer? O esporte pode proteger o cérebro contra o declínio cognitivo?
Os pesquisadores sugerem que o próximo passo é realizar estudos longitudinais que acompanhem esses atletas ao longo do tempo, analisando suas funções cerebrais tanto durante quanto após suas carreiras esportivas. Isso nos levaria a entender melhor se o treinamento intenso de décadas ajuda a preservar a cognição ou se, de alguma forma, essas adaptações neurais são temporárias.
Mais intrigante ainda, o estudo destaca a importância de entender o impacto do esporte em diferentes tipos de cognição. Se esportes de habilidade fechada como remo moldam o cérebro de uma forma, esportes de habilidade aberta, como futebol, podem gerar adaptações completamente diferentes. Portanto, pesquisas futuras podem nos ajudar a desvendar como o cérebro de atletas responde às demandas específicas de cada esporte e como essas adaptações podem ser aproveitadas para a saúde geral da população.