Há pouco mais de 50 anos atrás, os cientistas Theodore Friedmann e Richard Roblin, trabalhando na Universidade da Califórnia, propuseram a terapia gênica. Eles tinham a hipótese que a modificação genética com DNA exógeno — DNA introduzido de fora do organismo — poderia ser um tratamento eficaz para doenças hereditárias humanas. Tal conjectura surgiu a partir da compreensão de que genes defeituosos poderiam ser corrigidos ou substituídos por versões funcionais. Assim, potencialmente oferecendo uma solução duradoura e curativa para essas condições. Nos dias atuais, a terapia gênica é uma realidade promissora que oferece benefícios duradouros e possivelmente curativos para diversas doenças. A trajetória foi longa e cheia de desafios, mas os avanços têm sido extraordinários.
Avanços Críticos na Terapia Gênica
O desenvolvimento de vetores de entrega genética, como retrovírus e adenovírus associados (AAV), iniciou os primeiros ensaios clínicos na década de 1990. Os retrovírus são uma classe de vírus que têm a capacidade de integrar seu material genético ao DNA da célula hospedeira, permitindo uma modificação genética permanente. Já os adenovírus são vírus que geralmente causam infecções respiratórias, mas podem ser modificados para carregar genes terapêuticos sem se integrarem ao DNA do hospedeiro, o que reduz o risco de mutações indesejadas.
Os vetores de entrega genética funcionam como “transportadores” que introduzem o DNA terapêutico nas células do paciente. O DNA terapêutico é inserido no vetor viral, que é então administrado ao paciente. O vetor entrega o DNA terapêutico dentro das células, onde ele pode expressar a proteína necessária para corrigir ou compensar o defeito genético.
Efeitos Colaterais Graves nos Primórdios da Terapia Gênica
Apesar dos contratempos iniciais, como respostas inflamatórias e malignidades causadas pela inserção do DNA viral em locais indesejados do genoma, a pesquisa básica avançou significativamente. Esses contratempos incluíram reações imunológicas graves e casos de câncer, que surgiram quando a inserção dos genes terapêuticos ativou inadvertidamente genes (oncogenes) associados a esta doença. Esses desafios levaram a um esforço renovado em pesquisa fundamental, focando na virologia, imunologia e biologia celular para entender melhor como evitar tais efeitos adversos.
Retorno à Pesquisa Básica
A evolução na pesquisa básica resultou em vetores mais seguros e eficientes. Por exemplo, cientistas desenvolveram vetores derivados de um tipo de retrovírus chamado lentivírus, que podem inserir genes em células não-divisoras, como neurônios e células musculares. Dessa forma, a implementação de técnicas de modificação de vetores visa reduzir o risco de ativação de oncogenes. Pois esses genes quando mutados ou expressos em níveis elevados, podem transformar uma célula normal em uma célula cancerígena.
Além disso, os vetores AAV (vírus adeno-associados) foram aprimorados para reduzir respostas imunológicas. Vetores AAV são ferramentas de entrega genética derivadas de um vírus não patogênico, usado para transportar genes terapêuticos para células-alvo sem integrar permanentemente no DNA do hospedeiro. Reduzir respostas imunológicas significa minimizar a reação do sistema imunológico do paciente contra o vetor viral, evitando a rejeição do tratamento e permitindo que o gene terapêutico funcione de forma eficaz e segura.
Esses avanços permitiram a tradução clínica bem-sucedida da terapia gênica em pacientes com várias condições. Alguns exemplos de sucesso incluem o tratamento de cegueira congênita, hemofilia B, atrofia muscular espinhal, imunodeficiências e certos tipos de câncer. Na cegueira congênita, a terapia gênica ajudou pacientes a recuperar a visão. Em hemofilia B, reduziu significativamente os episódios de sangramento. Na atrofia muscular espinhal, melhorou dramaticamente a função motora e a sobrevida de crianças afetadas. Além disso, a terapia gênica tem sido utilizada com sucesso para tratar imunodeficiências e certos tipos de câncer, como linfomas e leucemias, resultando em uma qualidade de vida significativamente melhor e maior sobrevivência dos pacientes.
Tecnologias Emergentes na Terapia Gênica
Nos últimos anos, as tecnologias de edição de genomas, como nucleases bacterianas e CRISPR-Cas9, revolucionaram o campo. A edição de genomas refere-se a técnicas que permitem modificar o DNA de um organismo de maneira precisa, alterando, adicionando ou removendo sequências específicas de DNA.
Nucleases bacterianas e CRISPR-Cas9 são ferramentas poderosas utilizadas nesse processo. As nucleases bacterianas são como tesouras pequenas que cortam o DNA em pontos específicos. Já o CRISPR-Cas9 funciona como um GPS muito preciso que leva essas tesouras a um ponto exato no DNA onde precisam fazer o corte. Depois que o DNA é cortado, ele pode ser consertado de várias maneiras, permitindo que cientistas adicionem, removam ou corrijam genes.
Essas tecnologias prometem transformar ainda mais a terapia gênica porque permitem uma modificação genética extremamente precisa e controlada. Ao contrário dos vetores virais, que apenas adicionam genes ao genoma, a edição de genomas pode corrigir mutações diretamente no local exato onde ocorrem, potencialmente oferecendo soluções mais eficazes e seguras para uma ampla variedade de doenças genéticas.
Cientistas aplicam essas tecnologias a diversos tipos de células, incluindo células somáticas e células-tronco. Eles modificam células somáticas, que são todas as células do corpo exceto os espermatozoides e óvulos, para tratar doenças específicas sem afetar as futuras gerações. Além disso, exploram frequentemente células-tronco, particularmente as hematopoéticas (que dão origem a todas as células sanguíneas), para terapias gênicas devido à sua capacidade de se renovar e diferenciar em vários tipos celulares, oferecendo uma abordagem duradoura e potencialmente curativa para muitas doenças genéticas.
Desafios e Perspectivas Associados à Terapia Gênica
Para que a terapia gênica tenha um impacto amplo, parcerias com empresas de biotecnologia e farmacêuticas são essenciais para superar desafios de produção e regulamentação. Além disso, a comunidade científica deve lidar de maneira mais eficiente com a genotoxicidade. Este termo refere-se ao potencial de danos que a terapia gênica pode causar ao DNA, pois podem levar a mutações, câncer e outros problemas genéticos. Além disso, é necessário abordar questões como a eficiência de transferência de genes, respostas imunológicas e questões éticas relacionadas à edição do genoma germinativo.
A eficiência de transferência de genes envolve a capacidade de introduzir genes terapêuticos nas células-alvo de maneira eficaz e sustentável. Por exemplo, em tratamentos para doenças genéticas, é necessário que uma quantidade suficiente de células seja modificada para que o tratamento seja eficaz. As respostas imunológicas ocorrem quando o sistema imunológico do paciente reage contra os vetores virais usados na terapia gênica, podendo limitar a eficácia do tratamento e causar efeitos adversos. Para reduzir essas respostas, os tratamentos usam técnicas como a modificação dos vetores para torná-los menos visíveis ao sistema imunológico.
Questões Éticas
O genoma germinativo inclui o material genético que passamos para as gerações futuras através dos óvulos e espermatozoides. Isso significa que qualquer alteração feita no DNA dessas células pode ser herdada pelos filhos e netos do indivíduo tratado. A edição desse genoma levanta questões éticas significativas. Por exemplo, se modificamos um gene para evitar uma doença, essa alteração será transmitida a todas as gerações futuras. Isso pode parecer uma coisa boa, mas diversas preocupações estão associadas a essa prática.
Primeiro, há a possibilidade de criar desigualdades genéticas. Imagine se apenas pessoas ricas puderem pagar por essas alterações genéticas. Elas poderiam criar uma vantagem genética para seus filhos, aumentando a desigualdade entre ricos e pobres. Segundo, há a manipulação de características não relacionadas à saúde. Por exemplo, além de evitar doenças, as pessoas poderiam querer escolher características como altura, inteligência ou cor dos olhos para seus filhos. Isso levanta a questão de até que ponto deveríamos interferir na natureza humana.
Terceiro, o consentimento para mudanças que afetam futuras gerações é uma questão complicada. As crianças que nascerem com essas alterações não terão tido a oportunidade de consentir com essas mudanças que afetam suas vidas. Por exemplo, uma alteração genética destinada a prevenir uma doença pode ter efeitos colaterais inesperados, e essas futuras gerações terão que lidar com as consequências sem terem tido escolha no processo.Esses exemplos ajudam a ilustrar as complexas questões éticas envolvidas na edição do genoma germinativo, mostrando por que é um tema tão sensível e debatido.
Para o Bolso de Poucos
A implementação dessas terapias também enfrenta desafios socioeconômicos e culturais significativos. Por exemplo, a autorização recente da terapia baseada em CRISPR chamada Casgevy no Reino Unido, Estados Unidos, Bahrein e Arábia Saudita para tratar a doença falciforme, uma condição que afeta principalmente populações na África Subsaariana e na Índia, destaca a disparidade no acesso aos tratamentos. Embora essas terapias representem um avanço fenomenal, seus altos custos, como os US$ 2,2 milhões por tratamento de Casgevy, tornam-nas inacessíveis para a maioria das pessoas que mais precisam delas.
A forma como determinam os preços das terapias exacerba as disparidades no acesso. Os modelos de precificação baseados no valor muitas vezes não consideram a necessidade, acessibilidade ou prevalência da doença em diferentes populações. Além disso, os pesquisadores geralmente coletam os dados clínicos usados para determinar o valor dos tratamentos apenas em países onde esperam comercializar o medicamento, ignorando a maioria das pessoas afetadas doença passíveis de tratamento por meio da terapia gênica em todo o globo.
Um Futuro Promissor para o Tratamento de Diversas Doenças
A terapia gênica está se consolidando como um componente crucial no tratamento de diversas doenças hereditárias e adquiridas. Os avanços científicos e clínicos dos últimos anos justificam um otimismo contínuo e esforços crescentes para integrar essas terapias ao nosso arsenal padrão de tratamento.
No entanto, para que a terapia gênica realize todo o seu potencial transformador, é imperativo que superemos não apenas os desafios científicos e técnicos, mas também as barreiras econômicas e sociais que limitam seu acesso. Precisamos de um compromisso global que vá além dos interesses comerciais e coloque a equidade no centro das decisões de desenvolvimento e distribuição dessas terapias.