É provável que você já tenha se feito essa pergunta: “Será que existe favoritismo parental?” Se você for filha, talvez se lembre de receber mais carinho ou liberdade. Se for o irmão mais velho, quem sabe tenha conquistado mais autonomia. Mas agora não é mais questão de impressão — um estudo publicado na renomada Psychological Bulletin analisou os dados de mais de 19 mil pessoas para responder essa pergunta incômoda com rigor científico.
O estudo foi liderado por Alexander C. Jensen e McKell A. Jorgensen-Wells, da Brigham Young University, e usou uma poderosa técnica estatística chamada meta-análise. Os pesquisadores examinaram 2.170 efeitos, coletaram dados de 87 fontes distintas e agruparam essas informações em 36 amostras independentes, com foco em famílias da América do Norte e Europa Ocidental. A pergunta central era simples: quem tende a ser favorecido por mães e pais?
Os resultados, porém, estão longe de ser simples ou neutros. Eles expõem, com números e padrões consistentes, um fenômeno silencioso que molda o desenvolvimento emocional de milhões de crianças — e que pode estar acontecendo dentro da sua própria casa, agora mesmo.
O Gatilho Invisível do Favoritismo Parental
A pesquisa mostrou que pais tendem a favorecer filhas, especialmente segundo o próprio relato dos adultos. Mães e pais, em diversos países, relataram demonstrar mais afeto às meninas — mesmo que as próprias crianças não percebam esse favoritismo. É um paradoxo curioso: pais acham que tratam filhas melhor, mas filhos não percebem isso da mesma forma.
O estudo também revela outro critério fundamental: a personalidade da criança. Crianças mais responsáveis, organizadas e obedientes — aquelas que se encaixam no perfil da “filha perfeita” ou do “filho ideal” — recebem mais carinho, menos críticas e interações mais positivas. Esse padrão se destacou principalmente nas dimensões de afeto e controle emocional.
Mas isso levanta uma questão inquietante: será que estamos confundindo “crianças fáceis de lidar” com “crianças mais dignas de amor”? Quando os pais demonstram mais afeto por filhos com personalidades agradáveis, não estariam condicionando seu amor ao comportamento idealizado?
A Ciência do Comportamento Infantil Que Molda Pais
O estudo se apoia no chamado modelo de efeitos da criança, proposto por Robert Bell em 1968. Ele rompe com a ideia tradicional de que os pais moldam os filhos em uma via de mão única. Pelo contrário: as crianças também moldam os pais. Filhos mais calmos, empáticos e cooperativos recebem mais liberdade, menos repreensões e mais afeto. Já crianças difíceis, impulsivas ou emocionalmente instáveis acabam evocando respostas mais rígidas, frias ou punitivas.
Esse novo olhar revela um dilema ético: o amor dos pais está condicionado ao temperamento dos filhos? Ao invés de agir como um porto seguro incondicional, a parentalidade pode estar sendo guiada — ainda que inconscientemente — por recompensas e punições emocionais.
Com base nisso, não é surpresa que o favoritismo também apareça na ordem de nascimento. Os irmãos mais velhos, apesar de não serem consistentemente mais favorecidos no afeto, recebem mais liberdade e autonomia. Já os mais novos tendem a sentir uma rigidez maior, o que muitas vezes é interpretado como injustiça.
Quando o Amor Vira Mérito — E o Impacto Disso no Favoritismo Parental
Ao favorecer filhos com base em traços de personalidade, os pais acabam criando um ambiente onde os filhos precisam conquistar o afeto, em vez de recebê-lo espontaneamente. E isso tem consequências profundas: estudos prévios já mostram que crianças mais favorecidas desenvolvem melhor autoestima, desempenho acadêmico e saúde mental. Já aquelas menos favorecidas tendem a se ressentir, ter conflitos familiares e carregar inseguranças para a vida adulta.
Mas talvez o aspecto mais inquietante seja outro: esse favoritismo raramente é percebido como problema pelos próprios pais. Eles acreditam estar sendo justos, amorosos e coerentes — sem perceber que estão reforçando um sistema de recompensas baseado em comportamento.
A pesquisa deixa claro: não se trata de amar menos um filho, mas de demonstrar esse amor de formas diferentes. Quando essas diferenças ultrapassam o limite da sensibilidade e se tornam padrões consistentes, silenciosamente moldam a autoimagem das crianças.
E Agora, O Que Fazer Com Essa Verdade?
Este estudo é um convite incômodo à autorreflexão. Não apenas para pais, mas para todos que viveram (ou vivem) a experiência da parentalidade, da irmandade ou da própria infância. Se 80% das pessoas têm irmãos, e quase todos os adultos terão mais de um filho, entender os mecanismos do favoritismo não é curiosidade — é responsabilidade emocional.
A grande urgência por trás desses dados está justamente no fato de serem tão comuns e tão silenciosos. Como disse o autor do estudo, “todos os pais tratam seus filhos de forma diferente”, mas quando isso se transforma em desigualdade emocional, os danos são duradouros.
Ao favorecer filhos com base em traços de personalidade, os pais acabam criando um ambiente onde os filhos precisam conquistar o afeto, em vez de recebê-lo espontaneamente. Na prática, eles até podem amar de forma igual — mas nem sempre transmitem isso da mesma maneira.