A deficiência de micronutrientes — especialmente ferro, zinco, iodo e vitamina A — é uma questão de saúde pública global, afetando bilhões de pessoas em países em desenvolvimento e desenvolvidos. Estudos conduzidos na Índia, como o de Platel e Srinivasan (2015), revelam taxas alarmantes de anemia e hipovitaminose A em crianças e adultos, mesmo em regiões onde a oferta alimentar parece suficiente. O fenômeno conhecido como “fome oculta” decorre não apenas da baixa ingestão, mas principalmente da limitada biodisponibilidade desses nutrientes em dietas baseadas em vegetais.
Diferentemente dos macronutrientes, cuja deficiência costuma ser visível, a carência de micronutrientes pode permanecer silenciosa, causando sérios impactos na imunidade, cognição, desenvolvimento infantil e longevidade. O artigo de Platel e Srinivasan aprofunda a compreensão dos fatores que afetam a absorção desses micronutrientes e propõe estratégias práticas para ampliar sua disponibilidade, tornando-se leitura obrigatória para profissionais de nutrição, políticas públicas e interessados em ciência alimentar.
Desafios na Absorção de Micronutrientes de Origem Vegetal
Micronutrientes como ferro e zinco são abundantemente encontrados em grãos, leguminosas, verduras e frutas tropicais. No entanto, a simples presença não garante absorção eficiente. O estudo destaca que o ferro dos cereais e leguminosas indianos, por exemplo, tem uma biodisponibilidade média inferior a 5%. Entre os principais vilões estão os fatores antinutricionais como fitatos, taninos, fibras insolúveis e, em menor grau, o cálcio. Esses compostos formam complexos insolúveis com minerais, dificultando sua absorção intestinal.
A pesquisa revela dados concretos: em diferentes tipos de grãos, a biodisponibilidade de ferro pode variar de 1,8% em feijão-caupi até 22% em grão-de-bico. Para o zinco, a faixa vai de 5,5% em sorgo até 56,5% em grão-de-bico descascado. Em geral, os pulsos (leguminosas) apresentam melhor desempenho que os cereais, sugerindo que a matriz alimentar e a interação entre componentes são determinantes para o aproveitamento nutricional dos alimentos.
Fatores Inibidores e Promotores da Biodisponibilidade
A influência de fatores inibidores — fitatos, taninos e fibras — é amplamente documentada. Dietas ricas em milheto perolado, por exemplo, apresentam menor absorção de ferro devido ao alto teor de fitatos. Por outro lado, certos componentes promovem a absorção: ácidos orgânicos (como o cítrico e ascórbico), proteínas e compostos sulfurados presentes em temperos do gênero Allium (cebola e alho) têm efeito comprovado na melhora da biodisponibilidade.

Curiosamente, a pesquisa indica que a relação molar fitato:zinco é um marcador útil para prever a absorção, mas o efeito inibitório apresenta um “teto” — após determinado ponto, aumentos adicionais de fitato não pioram a absorção. Para o cálcio, a relação com fitato também é relevante, mas menos drástica que para o zinco.
Outro dado interessante é o efeito competitivo entre minerais. O uso de suplementos de ferro ou cálcio em doses elevadas pode reduzir a absorção de zinco. Dessa forma, apontando para a necessidade de equilíbrio e planejamento em intervenções nutricionais.
Efeitos do Processamento Doméstico e Práticas Culinárias na Biodisponibilidade
O artigo traz avanços importantes ao demonstrar como o processamento caseiro pode transformar a biodisponibilidade dos micronutrientes. Práticas como germinação, fermentação, maltagem e cocção afetam de maneiras distintas a disponibilidade de ferro, zinco e cálcio.
O cozimento sob pressão e o uso de micro-ondas aumentam a biodisponibilidade do ferro, enquanto a de zinco pode diminuir, especialmente em pulsos. A germinação tende a aumentar a biodisponibilidade do ferro, reduzindo fitatos e taninos, mas pode não ter o mesmo efeito sobre o zinco. A fermentação, melhora drasticamente a absorção de ferro e zinco, efeito atribuído à formação de ácidos orgânicos e à redução de inibidores.
A adição de acidulantes (limão, amchur) e temperos ricos em compostos sulfurados (alho, cebola) durante a cocção aumenta significativamente a absorção de ferro e zinco, anulando parcialmente o efeito negativo dos inibidores. O estudo mostra que combinações inteligentes desses elementos, comuns na culinária indiana, podem atuar de forma aditiva ou até sinérgica para maximizar a absorção mineral.
Bioacessibilidade da Vitamina A Proveniente de β-Caroteno
Em regiões tropicais, a população depende principalmente do β-caroteno de verduras e frutas para suprir a necessidade de vitamina A. Porém, sua conversão e absorção são notoriamente baixas, exigindo ingestão oito vezes superior à recomendação de vitamina A pré-formada.

O artigo detalha como a matriz alimentar influencia essa absorção. Em folhas verdes, o β-caroteno está aprisionado em estruturas celulares rígidas, dificultando o acesso, enquanto em frutas como manga e mamão, ele está mais disponível. Experimentos mostraram que a adição de leite a preparações com manga ou mamão aumenta em até 56% a absorção de β-caroteno. Processos como cozimento, refogado e uso de óleo elevam ainda mais a biodisponibilidade, principalmente em vegetais folhosos. Temperos antioxidantes como cúrcuma e cebola protegem o β-caroteno durante o preparo, maximizando o potencial nutritivo do prato.
O Papel das Especiarias como Facilitadores da Biodisponibilidade
Especiarias comuns na dieta indiana — pimenta-do-reino, pimenta vermelha, gengibre — possuem compostos bioativos capazes de modificar a permeabilidade intestinal e estimular a absorção não só de micronutrientes, mas também de fitonutrientes como o β-caroteno. Estudos com animais demonstram que a piperina (da pimenta-do-reino) aumenta em até 147% a absorção de β-caroteno, enquanto a capsaicina (pimenta vermelha) e o gingerol (gengibre) também apresentam efeitos notáveis na absorção de ferro, zinco e cálcio. Esses resultados sugerem que pequenas mudanças nos hábitos alimentares podem gerar impacto expressivo na nutrição populacional.
Implicações Práticas e Estratégias Alimentares
A principal mensagem do artigo é que estratégias alimentares baseadas em conhecimento científico podem mitigar de forma eficiente a deficiência de micronutrientes em populações vegetarianas ou com restrição de alimentos de origem animal. Incentivar o uso de germinação, fermentação, acidulantes naturais e especiarias não só amplia a palatabilidade dos alimentos, mas também potencializa a absorção de nutrientes essenciais.
Políticas públicas, orientações nutricionais e campanhas educativas podem se beneficiar dessas descobertas ao sugerir mudanças simples, como o preparo de sucos e saladas com limão, o uso frequente de alho e cebola em refogados, ou a combinação de frutas amarelas com leite. Além disso, é fundamental evitar excessos de suplementos de ferro e cálcio sem acompanhamento profissional, devido ao risco de competição com outros micronutrientes.
A biodisponibilidade de micronutrientes de alimentos vegetais não é um destino fixo, mas o resultado de múltiplos fatores — desde a escolha dos ingredientes até o modo de preparo. O estudo de Platel e Srinivasan (2015) mostra que é possível potencializar a absorção de ferro, zinco e vitamina A adotando práticas culinárias inteligentes e equilibrando inibidores e promotores presentes na própria cultura alimentar. Ao unir tradição, ciência e criatividade, a mesa se transforma em um verdadeiro laboratório de saúde pública, capaz de enfrentar silenciosamente a “fome oculta” e promover bem-estar em escala global.