Durante dĂ©cadas, a demĂȘncia foi associada quase exclusivamente ao envelhecimento avançado. No entanto, uma nova pesquisa de grande escala publicada em dezembro de 2023 pela JAMA Neurology desafia esse paradigma. O estudo investigou mais de 356 mil pessoas com menos de 65 anos no Reino Unido, e revela que a demĂȘncia precoce â tambĂ©m conhecida como YOD (Young-Onset Dementia) â pode estar fortemente relacionada a fatores modificĂĄveis de saĂșde e estilo de vida.
Conduzido por pesquisadores das Universidades de Exeter e Maastricht, o estudo foi descrito por David Llewellyn, epidemiologista de Exeter, como âo maior e mais robusto jĂĄ realizado sobre demĂȘncia de inĂcio precoceâ. E com razĂŁo: os autores identificaram 15 fatores associados a um aumento ou redução significativa no risco de YOD. Tais fatores abragem dimensĂ”es biolĂłgicas, comportamentais, sociais e psicolĂłgicas.
O estudo conclui que muitas escolhas e condiçÔes de vida, antes subestimadas pelas diretrizes de prevenção, contribuem diretamente para o risco de demĂȘncia precoce. Embora a genĂ©tica ainda exerça um papel relevante, ela nĂŁo explica sozinha a complexidade do fenĂŽmeno. Com isso, os pesquisadores abrem novas possibilidades de ação prĂĄtica e vigilĂąncia preventiva.
Os 15 Fatores-Chave: Quando a Vulnerabilidade Cognitiva Vem de Fora
A anĂĄlise multifatorial revelou um conjunto de condiçÔes e contextos associados a um risco significativamente maior de demĂȘncia precoce. Entre os principais fatores de risco identificados estĂŁo nĂvel socioeconĂŽmico baixo, isolamento social, depressĂŁo, diabetes, doenças cardiovasculares, acidente vascular cerebral (AVC), deficiĂȘncia de vitamina D e inflamação sistĂȘmica (medida pelos nĂveis de proteĂna C reativa, um marcador comum em exames laboratoriais).
A presença de duas cĂłpias da variante genĂ©tica ApoE4 Δ4 â jĂĄ bem conhecida pela sua associação com a doença de Alzheimer â tambĂ©m se mostrou relevante. No entanto, mesmo indivĂduos sem essa predisposição genĂ©tica apresentaram risco aumentado quando expostos a certos fatores ambientais e comportamentais. Assim reforçando o papel decisivo de nossas decisĂ”es diĂĄrias na saĂșde cerebral.
Outro dado relevante foi o papel da fragilidade fĂsica, avaliada por meio da força de preensĂŁo manual. Esse indicador simples, mas poderoso, demonstrou correlação direta com o risco de declĂnio cognitivo precoce. Dessa forma, funcionando como um alerta precoce da condição fĂsica geral do paciente. Trata-se de um biomarcador funcional que, somado a outras variĂĄveis, pode ajudar a traçar perfis de risco com maior precisĂŁo.
O Paradoxo do Ălcool na DemĂȘncia Precoce: Uma Relação Complexa com o CĂ©rebro
Dentre os 15 fatores analisados, o consumo de ĂĄlcool apresentou uma associação particularmente complexa. Os pesquisadores observaram que o abuso de ĂĄlcool aumenta de forma significativa o risco de demĂȘncia precoce. No entanto, dados tambĂ©m indicaram que pessoas que relataram consumo moderado a elevado apresentaram, em mĂ©dia, um risco menor do que aquelas que se abstinham completamente.
Os pesquisadores ponderam que essa relação nĂŁo deve ser interpretada de forma literal ou simplista. O grupo de abstĂȘmios pode incluir pessoas que deixaram de beber devido a condiçÔes mĂ©dicas prĂ©-existentes, o que distorce a comparação direta. AlĂ©m disso, indivĂduos que mantĂȘm um consumo moderado geralmente apresentam outros hĂĄbitos saudĂĄveis que atuam como fatores de proteção. Pois geralmente possuem vida social ativa, alimentação equilibrada e menor incidĂȘncia de comorbidades.
Esse achado reforça que os pesquisadores devem interpretar os dados com cautela, considerando o contexto de cada indivĂduo. Embora nĂŁo recomendem o ĂĄlcool como fator protetor, eles levantam questionamentos sobre o impacto das interaçÔes entre saĂșde metabĂłlica, socialização e consumo moderado na longevidade cognitiva.
Proteção Cognitiva: Educação, Interação Social e Força FĂsica
O estudo tambĂ©m apontou trĂȘs fatores com associação direta Ă redução do risco de demĂȘncia precoce: nĂvel de educação formal elevado, maior força fĂsica e engajamento social. Esses componentes refletem dimensĂ”es cognitivas, funcionais e relacionais do indivĂduo, assim podendo sendo considerados pilares para a proteção neurolĂłgica ao longo do tempo.
DĂ©cadas de estudos em neurociĂȘncia reforçam o conceito de reserva cognitiva, e este estudo confirma essa relação. Portanto, quanto mais os indivĂduos se expĂ”em a estĂmulos intelectuais e educacionais ao longo da vida, maior Ă© a capacidade do cĂ©rebro de resistir a processos degenerativos. Essa proteção nĂŁo depende apenas de tĂtulos acadĂȘmicos â ela exige que as pessoas mantenham o cĂ©rebro ativo, desafiado e inserido em contextos contĂnuos de aprendizado.
A força da preensĂŁo manual, como jĂĄ citado, serve como um marcador acessĂvel de integridade funcional e estĂĄ relacionada Ă sarcopenia e outras manifestaçÔes de fragilidade. Por fim, o aspecto social Ă© decisivo: a solidĂŁo e o isolamento foram fortemente correlacionados com o aumento de risco, enquanto vĂnculos ativos e ambientes afetivos mostraram-se protetores consistentes.
De acordo com o estudo original publicado na JAMA Neurology (2023), os 15 fatores associados ao risco de demĂȘncia precoce (YOD) sĂŁo:
- Baixo nĂvel socioeconĂŽmico
- Isolamento social
- DepressĂŁo
- AVC (acidente vascular cerebral)
- Diabetes
- Doença cardĂaca
- DeficiĂȘncia de vitamina D
- NĂveis elevados de proteĂna C reativa (inflamação)
- Gene ApoE4 (duas cĂłpias)
- Consumo abusivo de ĂĄlcool
- Baixo nĂvel de escolaridade
- Fragilidade fĂsica (força da mĂŁo reduzida)
- Pouca atividade fĂsica (sedentarismo)
- Pouca interação social (rede de apoio fraca)
- Estresse crĂŽnico / problemas de saĂșde mental nĂŁo tratados
O Que Esse Estudo Sobre DemĂȘncia Precoce Muda â e Como Isso Afeta VocĂȘ
Ă importante ressaltar que o estudo nĂŁo estabelece causalidade direta, mas sim relaçÔes estatisticamente significativasentre variĂĄveis. Ainda assim, o conjunto dos dados amplia a compreensĂŁo sobre a demĂȘncia precoce e oferece bases sĂłlidas para polĂticas de prevenção, diagnĂłstico e intervenção.
Para a população em geral, o impacto Ă© profundo. Ao reconhecer que muitos dos fatores estĂŁo sob nosso controle direto ou indireto, cria-se uma nova perspectiva de enfrentamento: mais ativa, preventiva e responsĂĄvel. A ideia da demĂȘncia ser um destino inevitĂĄvel nĂŁo se mostra mais verdade. Pois as evidĂȘncias apotam que nossas escolhas de hoje influenciam a saĂșde cerebral de amanhĂŁ.
Como destacou a neurocientista Stevie Hendriks, da Universidade de Maastricht: âA demĂȘncia precoce tem um impacto devastador, porque atinge pessoas em plena vida produtiva, com famĂlia, responsabilidades e planos futuros.âIsso torna a detecção precoce e a educação em saĂșde mental ainda mais urgentes â nĂŁo apenas no campo mĂ©dico, mas tambĂ©m no debate pĂșblico e nas açÔes de saĂșde coletiva.