O que nos protege — ou nos torna vulneráveis — diante da depressão pode não ser o que pensamos e isso está associado à flexibilidade cognitiva. Um novo estudo publicado no Journal of Affective Disorders desafiou modelos tradicionais sobre a relação entre cognição e sintomas depressivos ao demonstrar que, mais do que a velocidade de processamento ou a flexibilidade mental em si, é a maneira como regulamos nossas emoções que conecta esses processos à depressão. Em outras palavras: o cérebro não sofre sozinho — ele sofre com o que pensamos e como pensamos sobre o que sentimos.
A pesquisa foi conduzida por Daniel Castro e colegas da Universidade da Maia (Portugal), com apoio de dados da Leipzig Study for Mind-Body-Emotion Interactions, e analisou 227 participantes saudáveis com idades entre 20 e 77 anos. O objetivo era investigar como a velocidade de processamento e a flexibilidade cognitiva influenciam os sintomas depressivos por meio de estratégias de regulação emocional — como ruminação, autoacusação, catastrofização e reavaliação positiva. Ao invés de usar modelos lineares, os pesquisadores adotaram a abordagem de network analysis. Pois essa metodologia permite observar como diferentes variáveis interagem de maneira complexa, simulando redes reais de influência psicológica.
Entre os instrumentos usados estavam o Trail Making Test (para medir velocidade e flexibilidade), a Hamilton Depression Rating Scale (para avaliar sintomas depressivos) e o Cognitive Emotional Regulation Questionnaire. O estudo não incluiu pessoas com depressão clínica, o que permitiu analisar com mais precisão como mecanismos sutis de vulnerabilidade se expressam antes que a depressão se manifeste de forma severa.
Ruminação: O Nó Central da Depressão
O achado mais expressivo da análise de rede foi a centralidade da ruminação. Essa estratégia emocional se caracteriza por ciclos repetitivos de pensamentos negativos sem resolução. Ela surgiu como o elo mais curto e potente entre déficits cognitivos e sintomas depressivos. Pessoas com menor velocidade de processamento ou baixa flexibilidade não se tornam diretamente mais deprimidas. No entanto, tendem a usar a ruminação para lidar com emoções difíceis, o que aumenta os sintomas ao longo do tempo.
A catastrofização (imaginar os piores cenários possíveis) e a autoacusação também apresentaram alta centralidade na rede. Já a reavaliação positiva (buscar sentido construtivo em eventos negativos) teve função protetora. Esses resultados reforçam que não basta observar o que sentimos. A maneira como lidamos com as emoções influencia diretamente nossa saúde mental.
A velocidade de processamento desempenhou um papel de ponte entre diferentes sub-redes emocionais. Isso sugere que melhorar essa habilidade pode suavizar ou interromper conexões psicológicas nocivas. A flexibilidade cognitiva, porém, teve um impacto ainda maior. Simulações com níveis altos dessa habilidade mostraram uma queda significativa na conectividade da rede. Esse padrão está associado a menor risco de desenvolver sintomas depressivos.
Modelos Psicológicos Precisam se Tornar mais Orgânicos
Esse estudo revela uma mudança de paradigma. Os autores argumentam que é hora de abandonar modelos fragmentados e unidimensionais para compreender transtornos como a depressão. Enquanto abordagens tradicionais isolam “sintomas”, “funções cognitivas” ou “estratégias emocionais”, a abordagem de rede permite ver como esses elementos formam sistemas dinâmicos e interdependentes.
A análise demonstrou, por exemplo, que altos níveis de flexibilidade e velocidade cognitiva, quando combinados, reduzem a atividade global da rede depressiva. O contrário também é verdadeiro: déficits em ambas as áreas elevam o risco de ativação da rede emocional negativa, mesmo entre indivíduos saudáveis. Isso aponta para a possibilidade de prevenção precoce, com intervenções que melhorem não apenas o humor, mas também a agilidade mental e a capacidade de mudança cognitiva.
Apesar de seu valor, o estudo apresenta limitações. A amostra não incluía pacientes com depressão diagnosticada, o que reduz a aplicabilidade clínica direta. Além disso, a ferramenta usada para medir flexibilidade (Trail Making Test) pode não capturar com precisão todos os aspectos desse construto, devido à alta correlação entre suas duas partes. Os autores também destacam a necessidade de novos instrumentos validados dentro da lógica de redes psicológicas e sugerem a incorporação de dados passivos — como rastreamento comportamental por dispositivos digitais — para estudos futuros.
Flexibilidade Cognitiva como Fator Protetor
Ao final das simulações, ficou claro que investir na melhoria da flexibilidade cognitiva pode ser uma das estratégias mais promissoras para reduzir o impacto da depressão — não por eliminar sintomas diretamente, mas por mudar a forma como o indivíduo lida com emoções negativas. Em um cenário clínico, isso sugere que práticas como terapia cognitivo-comportamental adaptada, treinamento de tarefas multitarefa, jogos mentais e mindfulness com foco em alternância de perspectivas podem ajudar a fortalecer essa habilidade.
O estudo também reforça a importância de evitar a ruminação como padrão automático. Isso não implica “pensar positivo” superficialmente, mas construir novas formas de interpretar eventos e sentimentos — menos repetitivas, menos autodepreciativas, mais flexíveis.
No fim das contas, a mente humana funciona como um ecossistema: alterar um único elemento pode mudar o equilíbrio inteiro. Este trabalho é mais um passo em direção a intervenções personalizadas, onde cada nó da rede mental é avaliado não como um ponto fixo, mas como parte de um fluxo dinâmico em constante reconfiguração.