Um estudo publicado na Sexual Health trouxe à tona uma relação subestimada entre trabalho sexual e dismorfia muscular, revelando um novo cenário de riscos para a saúde mental e física. A pesquisa conduzida no Canadá apontou que jovens envolvidos em trabalho sexual apresentam maiores índices de sintomas de dismorfia muscular, como a busca obsessiva por maior massa muscular e comprometimentos funcionais que afetam a vida cotidiana. Essa análise não apenas expõe as vulnerabilidades dessa população, mas também levanta reflexões sobre o impacto do estigma e da objetificação no corpo e na mente.
Uma Condição Invisível em um Contexto Estigmatizado
A dismorfia muscular, embora menos conhecida, é um transtorno mental grave caracterizado pela preocupação excessiva em atingir padrões de musculatura. Entre trabalhadores sexuais, essa condição ganha uma dimensão alarmante. O estudo mostrou que a profissão, caracterizada pela objetificação do corpo em um ambiente de alta vulnerabilidade, amplifica os riscos de insatisfação corporal e comportamentos extremos voltados à hipertrofia muscular.
Pesquisas anteriores já haviam associado o trabalho sexual a transtornos mentais, como ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático. No entanto, a relação com a dismorfia muscular é um tema ainda pouco explorado. Este estudo destaca que trabalhadores sexuais não apenas enfrentam estigmas sociais, mas também sofrem impactos profundos em sua relação com o próprio corpo. Essa combinação de fatores psicológicos e sociais agrava condições como a vigorexia, tornando-a uma questão de saúde pública negligenciada.
Além disso, o estudo sugere que a busca pela musculatura em trabalhadores sexuais pode estar mais relacionada à necessidade de funcionalidade e proteção do que à preocupação estética. Esse detalhe desafia a narrativa tradicional sobre insatisfação corporal, destacando o impacto prático de fatores psicossociais no comportamento.
Metodologia e Achados Do Estudo Sobre Trabalho Sexual e Dismorfia Muscular
O estudo analisou dados de 912 jovens, entre 16 e 30 anos, coletados por meio da segunda onda do Canadian Study of Adolescent Health Behaviors. A amostra foi recrutada em redes sociais como Instagram e Snapchat, garantindo, assim, diversidade em gênero, orientação sexual, etnia e nível socioeconômico. Além disso, cerca de 4% dos participantes relataram histórico de trabalho sexual, definido como a troca de serviços sexuais por pagamento.
Para avaliar os sintomas de dismorfia muscular, os pesquisadores utilizaram o Muscle Dysmorphic Disorder Inventory (MDDI), um questionário de 13 itens que mensura três dimensões principais: busca por hipertrofia, intolerância à aparência e prejuízos funcionais causados pela condição. O estudo também considerou dados demográficos dos participantes para isolar fatores que poderiam influenciar os resultados.
Os resultados mostraram que indivíduos com histórico de trabalho sexual apresentaram índices mais altos no MDDI, particularmente nas dimensões “drive for size” (a busca por maior massa muscular) e “functional impairment” (prejuízos funcionais, como evitar atividades sociais ou profissionais em prol de objetivos relacionados à musculatura). Esses achados reforçam a ideia de que o ambiente do trabalho sexual pode atuar como um catalisador para comportamentos dismórficos, embora a causalidade ainda não possa ser estabelecida devido ao design transversal da pesquisa.
O Papel do Estigma e da Objetificação na Dismorfia Muscular
O estudo também oferece uma lente teórica para entender como a objetificação, amplificada no contexto do trabalho sexual, impacta a saúde mental. Segundo os pesquisadores, quando o corpo é objetificado e tratado como uma mercadoria, aumenta a probabilidade de auto-objetificação e insatisfação corporal. Isso motiva comportamentos obsessivos para atender às expectativas socioculturais de beleza e desempenho.
No entanto, diferentemente de outros grupos afetados pela dismorfia muscular, os trabalhadores sexuais parecem buscar a musculatura mais por razões funcionais do que estéticas. A musculatura serve como ferramenta para proteger contra violência ou como atributo desejável que atende às preferências de clientes. Esse aspecto prático mostra como fatores psicológicos e as dinâmicas da profissão influenciam a condição.
Essa conclusão não apenas destaca o impacto do estigma, mas também levanta a questão de se as intervenções devem considerar as especificidades do trabalho sexual no tratamento da dismorfia muscular.
Limitações e Necessidade de Pesquisas Futuras
Embora os resultados sejam significativos, o estudo possui limitações importantes. A dependência de dados autodeclarados pode introduzir vieses, como subnotificação ou exagero. Além disso, a metodologia transversal impede conclusões causais. Não é claro se o trabalho sexual desencadeia a dismorfia muscular ou se indivíduos com tendências dismórficas são mais propensos a entrar nessa profissão.
Pesquisas futuras devem priorizar estudos longitudinais e explorar a interseção entre vulnerabilidades sociais, objetificação e saúde mental. Além disso, há uma necessidade urgente de criar programas de prevenção e intervenção que considerem os fatores únicos enfrentados por trabalhadores sexuais, desde o estigma até a violência.
O estudo é um convite para reconsiderar como vemos a saúde mental em populações marginalizadas. Pois a relação entre trabalho sexual e dismorfia muscular expõe um ciclo de vulnerabilidade amplificado por estigmas sociais e pressões culturais. Portanto, ao colocar esses indivíduos no centro das discussões de saúde pública, podemos trabalhar para reduzir os impactos negativos da profissão e promover o bem-estar físico e mental.
Referência:
Ganson, K. T., Pang, N., Testa, A., Rodgers, R. F., Jones, J., & Nagata, J. M. (2024). Involvement in sex work is associated with muscle dysmorphia symptomatology among a sample of Canadian adolescents and young adults. Sexual Health. Leia o estudo completo aqui.