As brincadeiras fazem parte de um comportamento amplamente distribuído entre diferentes espécies, tanto em invertebrados quanto em vertebrados. Definir o que é uma brincadeira continua sendo um desafio, mesmo com sua ampla ocorrência no reino animal. Burghardt, um importante especialista em comportamento animal, estabeleceu que podemos considerar um comportamento como brincadeira quando não possui uma função imediata. Dessa forma, precisa ser espontâneo e envolver padrões modificados, repetidos de maneira não estereotipada.
A brincadeira só acontece quando o indivíduo está em um estado de relaxamento, sem sofrer de estresse agudo. Isso significa que, para que um animal se envolva em uma atividade lúdica, ele precisa estar em uma condição segura e confortável, sem sentir ameaças imediatas ou pressão física e emocional. Se o animal estiver estressado ou em perigo, ele não exibirá comportamentos de brincadeira, pois suas energias estarão focadas em lidar com o estresse.
Existem diversos tipos de brincadeira, que podem variar de acordo com os padrões motores utilizados (como correr ou dar piruetas), o número de participantes (brincadeiras solitárias ou sociais), e o uso de objetos. No entanto, do ponto de vista cognitivo, brincar em contexto social exige habilidades comunicativas complexas, especialmente quando envolve padrões motores de domínios agonísticos, como a luta. Essa comunicação precisa ser ajustada para evitar que o jogo degenere em agressão real. Um exemplo de tal sinal é o “boca aberta” (open mouth, OM), amplamente observado em mamíferos sociais.
O Sinal de Boca Aberta e sua Função
Segundo a teoria de Tinbergen, os sinais de comunicação evoluem de comportamentos que antes tinham uma função prática, mas que foram modificados para transmitir novas mensagens. No caso dos golfinhos, o comportamento de “boca aberta” é um exemplo disso. Assim como o “rosto de brincadeira” dos macacos ou o riso em humanos, essa expressão nos golfinhos serve para mostrar que eles estão apenas brincando e não sendo agressivos.
Os golfinhos-nariz-de-garrafa são um modelo ideal para investigar a comunicação lúdica, devido à sua propensão para brincar em todas as idades. Eles se envolvem em brincadeiras acrobáticas, manipulam objetos e participam de brincadeiras sociais tanto com outros golfinhos quanto com humanos. A expressão facial de boca aberta, embora interpretada pelos humanos como um “sorriso amigável”, tem uma função mais específica na gestão de encontros lúdicos entre golfinhos.
A Mimese Rápida e o Contágio Emocional
Outro aspecto importante da comunicação lúdica é a “mímica facial rápida” (rapid facial mimicry, RFM), que é a replicação automática e instantânea de expressões faciais. Nos humanos, esse reflexo ocorre em menos de 500 milissegundos e está fora do controle consciente.
Esse fenômeno, chamado de mímica rápida, acontece quando um animal imita instantaneamente a expressão facial ou o comportamento de outro, sem pensar. Em mamíferos não-humanos, essa imitação ajuda a sincronizar os movimentos durante as brincadeiras, garantindo que ambos os animais estejam em sintonia. Isso faz com que a interação fique mais fluida e harmoniosa, permitindo que eles “entendam” melhor as intenções um do outro e evitem conflitos, mantendo o clima de diversão.
Um exemplo comum é quando um cão exibe a “cara de brincadeira” — uma expressão onde ele abre a boca e deixa a língua relaxada, parecendo sorrir. Quando outro cão vê essa expressão, ele rapidamente imita o comportamento, mostrando que também está no espírito de brincadeira. Essa imitação ajuda os cães a se sincronizarem e entenderem que o outro não está sendo agressivo, mas sim querendo interagir de forma divertida. Esse comportamento facilita uma interação tranquila e mantém o clima amistoso entre os cães.
Hipóteses sobre a Comunicação Lúdica dos Golfinhos Por Meio de Brincadeiras
Em um estudo recente, os pesquisadores queriam entender melhor como os golfinhos se comunicam durante as brincadeiras, especialmente o que significa o comportamento de “boca aberta” que eles fazem frequentemente. Algumas perguntas principais surgiram a partir dessas observações.
Uma das perguntas foi: será que os golfinhos abrem a boca mais frequentemente quando estão brincando com outros golfinhos ou humanos, do que quando estão sozinhos? Se esse gesto realmente ajuda a mediar a interação lúdica, faz sentido que ele apareça mais nas brincadeiras sociais. Além disso, os cientistas se perguntaram se o comportamento seria mais comum quando o outro golfinho está olhando diretamente para o que faz o gesto. Assim, aumentando as chances de que o sinal seja compreendido.
Outra questão importante era saber se o “boca aberta” provoca uma resposta imediata do outro golfinho, como uma espécie de reflexo. Os pesquisadores queriam descobrir se, ao ver o gesto, o outro golfinho responde rapidamente imitando a mesma expressão, como ocorre em humanos e outros animais durante brincadeiras. Essas perguntas guiaram o estudo para investigar a complexidade por trás da comunicação lúdica dos golfinhos.
Modelo Experimental Para Avaliar Brincadeiras
Os pesquisadores realizaram o estudo com 22 golfinhos-nariz-de-garrafa residentes em dois locais: Zoomarine, Itália, e Planète Sauvage, França. No Zoomarine, eles observaram 11 golfinhos (seis machos e cinco fêmeas) de 1 a 38 anos, e no Planète Sauvage, 11 golfinhos (sete machos e quatro fêmeas) de 1 a 34 anos. As filmagens ocorreram durante atividades livres, fora de sessões de treinamento e alimentação, em ambos os parques, de agosto a setembro de 2023 na França e de setembro a novembro de 2020 na Itália.
As interações filmadas incluíam brincadeiras solitárias, sociais entre golfinhos, e interações sociais entre golfinhos e humanos. Nos dois locais, os pesquisadores mantinham os golfinhos em piscinas ao ar livre, garantindo uma alimentação controlada diariamente. No Zoomarine, FV e um assistente realizaram as gravações, enquanto no Planète Sauvage, VM e EP ficaram responsáveis pelas filmagens. As gravações capturaram todos os comportamentos dos golfinhos visíveis através de janelas de vidro submersas, garantindo a observação de todas as interações lúdicas, tanto solitárias quanto sociais.
O Que os Golfinhos Nos Ensinaram Por Meio de Brincadeiras
Os pesquisadores passaram 80 horas filmando e registraram impressionantes 837 sessões de brincadeiras entre os golfinhos. Dessas, 79 foram brincadeiras solitárias, 398 envolveram interação com humanos, e 360 ocorreram entre os próprios golfinhos. Durante esse período, os cientistas observaram 1.288 momentos em que os golfinhos abriam a boca (comportamento conhecido como “boca aberta”, ou OM). Curiosamente, esse gesto apareceu apenas uma vez em brincadeiras solitárias, assim sugerindo que ele está fortemente ligado à interação social.
Eles também notaram que os golfinhos utilizavam muito mais o OM quando estavam brincando com outros golfinhos (em 92,3% dos casos) do que com humanos. Além disso, os golfinhos faziam esse gesto principalmente quando o parceiro estava olhando diretamente para eles. Portanto, indicando que eles sabem exatamente quando estão sendo observados e ajustam seu comportamento de acordo, tornando a brincadeira ainda mais envolvente e coordenada.
Reflexo Rápido: Resposta Instantânea
Outra descoberta fascinante foi a rapidez com que os golfinhos reagem ao comportamento de OM dos seus parceiros. Quando um golfinho via o outro com a boca aberta, ele imitava o comportamento em cerca de um terço das vezes. Além disso, isso acontecia rapidamente, em menos de um segundo. Essa resposta rápida indica que os golfinhos têm uma capacidade instintiva de “sincronizar” suas ações durante as brincadeiras, o que reforça seus laços sociais.
Embora o OM em golfinhos não apresente a mesma variabilidade que em primatas ou outros carnívoros sociais, ele serve como um meio eficaz de comunicação. Assim como outros animais usam diferentes modos sensoriais para influenciar o comportamento dos parceiros, os golfinhos adaptaram suas interações às condições do ambiente. Em águas com baixa visibilidade, onde os golfinhos normalmente vivem, a comunicação acústica é predominante. No entanto, em situações de boa visibilidade, a comunicação visual, como o OM, se torna essencial.
Comunicação Multimodal: Mais do que Apenas Visual
Embora o foco deste estudo tenha sido a comunicação visual, é importante lembrar que os golfinhos possuem um dos sistemas de comunicação vocal mais complexos do reino animal. Eles conseguem identificar e interagir socialmente uns com os outros através de assobios e outros sons. No entanto, em brincadeiras, onde a vigilância contra predadores é reduzida, a comunicação visual parece ser uma estratégia eficiente.
Há também a possibilidade de que outros sentidos, como o tato, desempenhem um papel nas interações lúdicas. O rostro sensível dos golfinhos pode detectar variações de pressão na água, o que sugere que as brincadeiras podem envolver mais do que apenas sinais visuais.
O rostro do golfinho é a parte alongada da frente de sua cabeça, que se assemelha a um “bico” ou “focinho”. Ele é uma extensão óssea coberta por pele, e é bastante rígido. O rostro ajuda o golfinho a nadar de forma mais eficiente e é também usado em comportamentos sociais, como brincadeiras ou até interações mais agressivas. Além disso, o rostro é muito sensível e pode detectar variações na água ao seu redor, sendo uma ferramenta importante para navegação e comunicação.
Só o Começo das Brincadeiras
Apesar de ainda haver muito a descobrir sobre como os golfinhos se comunicam visualmente, este estudo já revela algo fascinante: o gesto de “boca aberta” (OM) e a rápida imitação facial (RFM) são essenciais para manter as brincadeiras sociais entre eles. Esses comportamentos, que também aparecem em outros mamíferos, mostram como os sinais visuais são cruciais na evolução da comunicação complexa. Embora o estudo tenha sido realizado com golfinhos em cativeiro, ele abre portas para futuras pesquisas sobre como esses animais utilizam diferentes sentidos, como o tato e a visão, para interagir e se divertir, revelando a riqueza da vida social dos golfinhos.