
Leonardo Baptista, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
JĂĄ Ă© senso comum que o negacionismo cientĂfico se espalhou pelo mundo e continua a aumentar. Apesar de nĂŁo ser um fenĂŽmeno recente, os ataques contra o conhecimento cientĂfico tĂȘm tomado proporçÔes cada vez mais preocupantes. O recente caso envolvendo o canal âNunca Vi um Cientistaâ, das cientistas Ana Bonassa e Laura Marise, que foram processadas depois de denunciarem o perfil de uma nutricionista que vendia protocolos de âdesparasitaçãoâ como cura para o diabetes, exemplifica bem o momento em que vivemos.
Em 2020, o notĂłrio negacionista cientĂfico âMadâ Mike Hughes morreu ao decolar em um foguete caseiro para supostamente tentar provar que a Terra Ă© plana.
Nos Ășltimos anos, o negacionismo cientĂfico tambĂ©m se misturou ao charlatanismo e Ă pura picaretagem no terreno da SaĂșde. Na redes sociais, soluçÔes simplĂłrias e âmilagrosasâ sĂŁo divulgadas e vendidas como panaceias mĂĄgicas para doenças que, sabidamente, nĂŁo tĂȘm cura.
Hoje Ă© fĂĄcil de se encontrar, por exemplo, adesivos que protegem contra âos malefĂciosâ da poluição eletromagnĂ©tica emitida por celulares e fornos de micro-ondas. Recentemente, o governo holandĂȘs encontrou no mercado diversos acessĂłrios que seriam âprotetoresâ contra a radiação 5G dos celulares que para isso emitiam radiação ionizante. Esta sim, prejudicial a saĂșde.
Contato com Negacionismo
O livro âCiĂȘncia Picaretaâ, do escritor e psiquiatra britĂąnico Ben Goldacre, famoso pela coluna âBad Scienceâ, que escreveu no jornal The Guardian entre 2003 e 2011, Ă© um dos recentes best-sellers que evidenciam o poder deletĂ©rio que a pseudo-ciĂȘncia, o charlatanismo e o negacionismo exercem hĂĄ bastante tempo na vida das pessoas.
O livro mostra vĂĄrios casos em que o mau uso do conhecimento cientĂfico, ou simplesmente mĂĄ-fĂ©, levam a ideias absurdas sobre causas e curas de doenças, com destaque especial para as dietas ineficazes e atĂ© mesmo perigosas que sĂŁo vendidas de forma cada vez mais intensa por influenciadores de redes sociais.
A obra detalha casos nos quais informaçÔes absurdas, disfarçadas de verdades cientĂficas, foram usadas nos Ășltimos anos em benefĂcio de governos e empresas mal-intencionadas. Muitos exemplos sĂŁo de casos ocorridos durante a pandemia de COVID-19, e propagados pelas redes sociais. Mas o livro tambĂ©m alerta que o problema tem raĂzes, ao lembrar da iniciativa do governo da Ăfrica do Sul, que durante o auge da epidemia de AIDS, nos anos 90, negou que a doença fosse causada pelo vĂrus HIV. E do caso do Institute for Optimum Nutrition, que na mesma Ă©poca afirmava que Vitamina C era mais eficiente para o tratamento da AIDS que os antivirais empregados.
De lĂĄ para cĂĄ, tem sido muito fĂĄcil encontrar nas mĂdias sociais, e na internet como um todo, textos e vĂdeos que propagam ideias erradas sobre vacinas, curas para doenças incurĂĄveis, terraplanismo e outros temas.
TambĂ©m tornou-se notĂłria a propagação de desconfiança e desinformação contra a vĂĄlidade dos mĂ©todos cientĂficos promovidas por figuras pĂșblicas de governos de extrema-direita. Como foi o caso do ex-assessor da PresidĂȘncia da RepĂșblica durante o governo Jair Bolsonaro, Arthur Weintraub, que durante a pandemia afirmou durante a graçação de um vĂdeo que ââŠo modelo acadĂȘmico, que segue o mĂ©todo cientĂfico, Ă© um modelo arcaico, Ă© uma coisa que vem de quando nĂŁo havia internet..â. No mesmo epĂsĂłdio, ele conta que comprou cloroquina sem receita na farmĂĄcia e tomou por conta prĂłpria para conhecer os efeitos, e assim sentir-se apto a aconselhar o governo sobre o assunto. Um retrato nĂŁo sĂł de ignorĂąncia, mas de total desprezo com os protocolos cientĂficos e de segurança.
Neste cenĂĄrio, a pergunta que mais me chama atenção Ă©: âOnde nĂłs, professores e pesquisadores, estamos errando?â. Como principais formadores e divulgadores do conhecimento cientĂfico, o que fizemos, ou deixamos de fazer, para que chegĂĄssemos neste cenĂĄrio generalizado de negacionismo cientĂfico?
A ideia nĂŁo Ă© apontar culpados, ou achar um bode expiatĂłrio, mas refletir e pensar em açÔes que possam mitigar os problemas enfrentados. Ă preciso discutir o fenĂŽmeno e suas possĂveis causas, para a partir daĂ propor soluçÔes.
Cientistas x População
Ainda hoje prevalece o estereĂłtipo do cientista de meia-idade, com cabelos atrapalhados, vestindo jaleco e trabalhando sozinho em um laboratĂłrio cheio de frascos e substĂąncias coloridas. EstereĂłtipo esse que a academia vem tentando eliminar, junto a vĂĄrios divulgadores cientĂficos conhecidos. Dentre estes, Ă© importante divulgar os canais Nunca Vi Um Cientista, OlĂĄ CiĂȘncia, Manual do Mundo e a pĂĄgina do biĂłlogo Ătila Iamarino. Apenas trĂȘs bons exemplos de divulgadores brasileiros que lutam para mitigar o estrago causado pela pseudo-ciĂȘncia e negacionismo cientĂfico.
Apesar da maioria da população confiar nos cientistas, na AmĂ©rica do Norte jĂĄ foi verificado um declĂnio estatĂstico deste sentimento apĂłs a pandemia. TambĂ©m foi verificado que a desconfiança estĂĄ associada a uma inclinação polĂtico-ideolĂłgica, e nem sempre estĂĄ ligada ao nĂvel deescolaridade.
No Brasil, apesar de uma grande parcela da população ter interesse em ciĂȘncia, tecnologia, saĂșde e meio-ambiente, a população em geral mostra um completo desconhecimento a respeito das instituiçÔes de pesquisa e seus pesquisadores.
Fica claro que, apesar da reconhecida importĂąncia da ciĂȘncia, a população de forma geral nĂŁo sabe como e por quem Ă© feita a pesquisa cientĂfica no Brasil. Neste ponto podemos ver que, como grupo, os professores apenas conseguem fixar o conteĂșdo curricular de ciĂȘncias na mente dos estudantes. Deixando a desejar no que se refere ao processo cientĂfico como um todo.
Entretanto, como jĂĄ foi apontadoem outra matĂ©ria, a rejeição Ă ciĂȘncia nĂŁo se deve apenas as incertezas e complexidade dela, mas tambĂ©m ao confronto que esta causa com crenças e valores que as pessoas assumem como verdadeiras. Desta forma, existe um carĂĄter humano que Ă© preciso lidar, mas que Ă© muito mais complexo do que apenas fornecer dados e explicaçÔes de fenĂŽmenos.
AçÔes Contra a Desinformação
O caminho para divulgação cientĂfica na Internet jĂĄ estĂĄ bem traçado e mapeado: criação de canais em redes de vĂdeo, filmagem de experimentos, divulgação de trabalhos em mĂdias sociais etc. AlĂ©m da criação de eventos dedicados exclusivamente a divulgação cientĂfica, como o Pint of Science. No entanto, a luta neste campo Ă© acirrada.
Muitos negacionistas, pseudo-cientistas e âmĂ©dicos de YouTubeâ militam nesta mesma arena e com uma boa taxa de sucesso. Possivelmente por se conectarem emocionalmente melhor com seus interlocutores.
Uma razĂŁo por trĂĄs disso, Ă© o peso que tĂtulos como âDoutorâ e âMĂ©dicoâ tĂȘm na nossa sociedade, alĂ©m do apelo emocional aplicado por eles em seus conteĂșdos. Em contrapartida, os dados estatĂsticos, jargĂ”es de ĂĄrea e, Ă s vezes, a atitude empertigada dificultam a conexĂŁo dos cientistas de verdade com sua audiĂȘncia. Muitos divulgadores cientĂficos na Internet conseguem contornar estas dificuldades, mas nĂŁo sem uma dose jargĂ”es e dados excessivamente tĂ©cnicos que podem terminar por dificultar sua comunicação.
Por parte do meio acadĂȘmico, o ensino formal deveria ser a principal ferramenta contra pseudo-ciĂȘncia e negacionismo. Mas estĂĄ claro, pela observação da nossa sociedade, que o ensino formal nĂŁo estĂĄ cumprindo este papel.
Por outro lado, atividades extensionistas tĂȘm se mostrado um boa estratĂ©gia contra o negacionismo. A atividade continuada da divulgação cientĂfica parece ser outro caminho viĂĄvel, mas hĂĄ baixa aderĂȘncia pelos pesquisadores. Muito porque estas atividades geralmente nĂŁo pontuam para o currĂculo, e por isso logo sĂŁo abandonadas ou mesmo sequer cogitadas por muitos pesquisadores.
Outro ponto que dificulta a divulgação cientĂfica Ă© a inaptidĂŁo de pesquisadores neste trabalho. Uma pesquisa da agĂȘncia Bori indicou uma dificuldade de jornalistas contatarem pesquisadores e vice-versa. Segundo a pesquisa, a maioria dos entrevistados gostaria de divulgar sua pesquisa, mas nĂŁo sabe como fazĂȘ-lo. Adicionalmente, Ă© importante verificar se os pesquisadores sentem-se Ă vontade com a exposição midiĂĄtica e as polĂȘmicas que esta exposição pode causar.
Professores/Pesquisadores Versus Negacionismo
Em 2024, vimos agĂȘncias de fomento e a prĂłpria CAPES incentivando pesquisadores e professores a atuarem na divulgação cientĂfica, por meio de editais. No entanto, os professores e pesquisadores em atuação nas InstituiçÔes de Ensino Superior do paĂs foram formados sem treinamento neste campo. E Ă© possĂvel que a maioria dos docentes nem saiba que na sua instituição hĂĄ setores que o podem ajudar nesta tarefa.
TambĂ©m os fatores humanos apontados aqui precisam ser enfrentados: conexĂŁo entre pesquisador e sua audiĂȘncia; ligação entre pesquisadores e jornalistas; e como lidar com exposição midiĂĄtica e polĂȘmicas. Ă preciso melhorar a forma como nos comunicamos com alunos e leigos de forma geral. E neste caso, a simplicidade e levar em conta a experiĂȘncia de vida do nosso interlocutor pode ser o caminho para uma melhor conexĂŁo.*
Ă preciso ainda que sejam criadas pontes de entre jornalistas, revistas de divulgação cientĂfica e pesquisadores, alĂ©m de uma aproximação maior dos setores de comunicação das instituiçÔes de ensino com seus docentes. A AgĂȘncia Bori vem realizando o treinamento de pesquisadores para darem entrevistas e fazerem divulgação cientĂfica. Mas ainda nĂŁo parece ser algo de amplo conhecimento no meio acadĂȘmico.
O mundo dos canais digitais jĂĄ oferece iniciativas pontuais de divulgação cientĂfica propostas por docentes. O canal JĂĄ PensĂŽ?, do Professor Brebo GalvĂŁo, Ă© um deles. Mas sĂŁo atividades pulverizadas, e nĂŁo um movimento geral de divulgação cientĂfica. Logo, fica clara a existĂȘncia de um problema de comunicação entre professores/pesquisadores e a comunidade, dentro e fora das salas de aula. Ă atacando essa questĂŁo que poderemos, em mĂ©dio e longo prazo, começar a combater a febre da desinformação.
Leonardo Baptista, Professor Associado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
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