Vemos a criatividade como um fenômeno enigmático, frequentemente associado à maneira como percebemos e processamos o mundo ao nosso redor. Muitos acreditam que o poder criativo se liga a uma atenção mais ampla e dispersa, como se os criativos fossem atraídos por informações irrelevantes para a tarefa em questão. No entanto, o que se esconde por trás desse processo não é necessariamente uma falha no controle cognitivo, mas sim uma maneira única de processar a saliência de estímulos.
Saliência Incentivada: Transformando o Ordinário em Extraordinário
A saliência incentivada é o processo pelo qual informações neutras se transformam em dados que chamam a atenção e têm relevância motivacional. Esse mecanismo, que define quais informações são importantes, atua guiando nossa atenção e motivação. Por exemplo, ao ver um filme emocionante, algumas cenas se destacam mais que outras devido ao nosso cérebro atribuir a elas um valor especial. Essa transformação do neutro para o notável é um processo essencial na criatividade, já que permite aos criativos ver o mundo com uma lente única, encontrando valor onde outros veem o ordinário.
A Relação Ente Criatividade, Curiosidade e Esquizotipia
A forma como cada pessoa percebe a importância das recompensas pode explicar a variação na criatividade. A curiosidade, por exemplo, é impulsionada pela dopamina, que incentiva a exploração e a busca por conhecimento. Pessoas curiosas tendem a considerar mais importantes (ou salientes) os estímulos ou situações que oferecem novas informações ou oportunidades de aprendizado.
Paralelamente, pesquisadores associam condições como a esquizofrenia a um processamento aberrante da saliência, onde as pessoas veem informações irrelevantes ou neutras como altamente significativas. Por exemplo, uma pessoa com esquizofrenia pode acreditar que um simples padrão em um papel de parede contém mensagens secretas. Esse fenômeno pode levar a correlações espúrias e percepções distorcidas, contribuindo para características de ideação excêntrica e aberrações perceptuais. Curiosamente, também podemos observar essas características também em contextos de criatividade. Assim, sugerindo que a curiosidade e a criatividade compartilham mecanismos de processamento de saliência.
Explorando a Criatividade e a Resposta ao Estímulo “Oddball“
Quando falamos de criatividade, muitas vezes pensamos em mentes brilhantes que veem o mundo de uma forma que ninguém mais consegue. Mas o que acontece dentro do cérebro criativo? O Estudo 1 nos oferece uma perspectiva intrigante, explorando como a criatividade pode se relacionar com padrões neurais normalmente observados em distúrbios do espectro esquizofrênico.
O Que é o Estímulo “Oddball“?
O estímulo “oddball” (ou “estímulo inesperado”) é uma técnica utilizada para estudar como processamos informações inesperadas. Imagine ouvir uma sequência de notas musicais onde uma nota diferente soa de repente. Essa “nota diferente” é o estímulo inesperado, e nosso cérebro normalmente reage com um sinal conhecido como P300. Cientistas descobriram esse sinal nos anos 60 e o chamaram assim porque aparece em um registro de atividade cerebral, cerca de 300 milissegundos após o estímulo inesperado. Dessa forma, mostrando surpresa e a necessidade de ajustar nosso entendimento do que está acontecendo. No entanto, pesquisas revelam que pessoas com traços esquizotípicos – e surpreendentemente, também as pessoas criativas – tendem a apresentar uma resposta P300 reduzida, indicando uma avaliação menos intensa de surpresa.
A Tarefa Oddball: Uma Janela para o Inesperado
A tarefa oddball é um método experimental usado para estudar como o cérebro reage a estímulos raros em meio a uma série de estímulos comuns. No experimento, os participantes se sentaram confortavelmente a 70 cm de um monitor que exibiu imagens em um fundo cinza neutro. A cada bloco do experimento, eles pressionaram a barra de espaço para iniciar e fixaram o olhar em uma cruz no centro da tela. Após 1.500 ms, um pequeno círculo surgia por 100 ms, seguido de uma imagem de uma maçã ou uma pedra, determinada aleatoriamente por um gerador de números verdadeiramente aleatório. Se uma maçã fosse exibida, um som associado também seria tocado. Cada bloco continha 20 estímulos e durava cerca de um minuto.
Estudo Medindo a Criatividade
Em um estudo recente, pesquisadores mediram a criatividade através da Tarefa de Figuras Incompletas, parte do conjunto maior dos Testes de Pensamento Criativo de Torrance. Os Testes de Pensamento Criativo de Torrance são uma série de avaliações desenvolvidas para medir diferentes aspectos da criatividade. Eles foram criados por Ellis Paul Torrance e são amplamente utilizados para identificar e incentivar habilidades criativas.
A Tarefa de Figuras Incompletas, uma das atividades dentro desse conjunto, consiste em dar aos participantes uma folha com quatro caixas, cada uma contendo algumas linhas iniciais indefinidas. Em 10 minutos, os participantes devem completar quatro desenhos usando essas linhas de partida, sendo incentivados a expressar sua criatividade. Essa tarefa mede o pensamento divergente, que é uma habilidade fundamental em processos criativos e envolve a geração de ideias novas e diferentes.
Procedimentos do Estudo
Primeiro, os participantes completaram a Tarefa de Figuras Incompletas, que faz parte dos Testes de Pensamento Criativo de Torrance. Nesta tarefa, receberam uma folha com quatro caixas, cada uma contendo algumas linhas de partida indefinidas, e tiveram 10 minutos para completar quatro desenhos, usando essas linhas iniciais para expressar sua criatividade. Essa tarefa mede o pensamento divergente, essencial para a criatividade, pois envolve a geração de ideias novas e diferentes.
Após completarem a tarefa de figuras incompletas, os pesquisadores direcionaram os participantes a uma cabine isolada acusticamente para realizar a tarefa oddball (ou “tarefa de estímulo inesperado”). Chamamos essa tarefa de oddball porque apresenta estímulos raros ou inesperados em meio a estímulos frequentes. Os pesquisadores equiparam os participantes com um capacete EEG de 20 canais para registrar a atividade cerebral durante a realização da tarefa de estímulo inesperado.
No experimento, os participantes observaram uma sequência de 20 imagens, onde a maioria era de pedras e, ocasionalmente, apareciam imagens de maçãs acompanhadas por um som. Cada bloco de 20 estímulos durava cerca de um minuto, e os participantes precisavam contar quantas maçãs apareceram. Além disso, os pesquisadores também avaliavam o nível de fadiga dos participantes em uma escala de 1 a 10. Fizeram isso para confirmar se estavam acordados e atentos durante o bloco do experimento.
Criatividade e a Resposta ao Oddball
Os resultados mostraram que a criatividade está ligada a uma reação ao estímulo inesperado (oddball) parecida com a observada em estudos sobre esquizofrenia. Em particular, foi notado que a resposta P300, que é um sinal do cérebro indicando surpresa e a necessidade de ajustar o entendimento do que está acontecendo, foi menor em pessoas criativas. Essa resposta menor sugere que indivíduos criativos podem processar coisas inesperadas de uma forma diferente e única.
Isso pode indicar que a criatividade não se baseia apenas na flexibilidade atencional, ou seja, na capacidade de alternar e focar a atenção conforme necessário, mas também na maneira como informações relevantes ou irrelevantes são percebidas e interpretadas. Em outras palavras, os criativos podem ter uma forma diferenciada de atribuir importância a novas informações. Assim, lhes permitindo ver conexões e possibilidades que outros podem não notar.
Vantagens em Dar Menor Atenção ao Óbvio
Essa tendência a perceber e processar estímulos de maneira atípica pode ser vantajosa em contextos criativos. Por exemplo, em tarefas que requerem a geração de ideias originais, a capacidade de ignorar ou subestimar as características mais óbvias e dominantes do problema pode permitir aos criativos explorar soluções menos convencionais e mais inovadoras. Além disso, a habilidade de continuar a encontrar relevância em informações que outros podem considerar irrelevantes ou redundantes pode levar a insights únicos e novas abordagens.
Esses achados sugerem que o processamento de saliência – a forma como nosso cérebro decide o que é importante e merece atenção – pode desempenhar um papel crucial na criatividade. Assim, entender melhor esses mecanismos pode não apenas ampliar nosso conhecimento sobre a criatividade, mas também ajudar a desenvolver estratégias para fomentar habilidades criativas em diferentes contextos.
A Criatividade como Fenômeno Multidimensional
À medida que continuamos a explorar a criatividade através da lente do processamento de saliência, nos deparamos com uma pergunta provocativa: O que realmente alimenta a genialidade criativa? A criatividade não é apenas um traço de personalidade, mas um processo dinâmico que envolve a complexa interação entre cérebro, mente e ambiente. Você já se perguntou como pequenas diferenças na forma como percebemos e processamos o mundo podem transformar alguém em um inovador brilhante?
As descobertas iniciais desses estudos não apenas ampliam nossa compreensão sobre a criatividade, mas também nos desafiam a investigar mais profundamente como variações individuais no processamento de saliência influenciam a capacidade criativa. Será que você, com sua percepção única, poderia ser o próximo a revolucionar uma área inteira do conhecimento?