Durante décadas, pesquisadores consideraram a hipersensibilidade a sons, cheiros e texturas como uma característica central do espectro autista. No entanto, uma nova pesquisa publicada na revista Translational Psychiatry propõe uma hipótese provocadora: essas experiências sensoriais não seriam, necessariamente, causadas pelo autismo em si. A raiz genética dessas sensibilidades pode estar em outro fator frequentemente negligenciado: a alexitimia, uma condição marcada pela dificuldade de identificar e descrever as próprias emoções.
O estudo utilizou dados do prestigiado Twins Early Development Study, conduzido no Reino Unido, envolvendo 207 pares de gêmeos (sendo 55 idênticos e 152 fraternos). Com base em entrevistas clínicas rigorosas e questionários parentais, os pesquisadores mediram três dimensões distintas: traços autistas, sintomas sensoriais e níveis de alexitimia. O objetivo era claro: entender se a sobreposição entre autismo e sensibilidade sensorial era, de fato, genética — e, se sim, de qual condição ela realmente derivava.
A surpresa veio com a análise genética: ao controlar estatisticamente os níveis de alexitimia, a associação entre autismo e sintomas sensoriais desapareceu. Isso significa que os genes responsáveis pela dificuldade de processar emoções — e não os genes ligados ao autismo — parecem ser os verdadeiros responsáveis pelas alterações sensoriais frequentemente atribuídas ao espectro autista.
Alexitimia: Um Fator Genético Transdiagnóstico?
A equipe de pesquisadores, liderada por Geoffrey Bird (Universidade de Oxford e University College London), argumenta que estamos lidando com um possível fator transdiagnóstico. A alexitimia não é exclusiva do autismo: ela é comum também em transtornos como ansiedade, depressão e distúrbios alimentares. Isso levanta uma possibilidade robusta, mas incômoda: será que parte do que chamamos hoje de “autismo” é, na verdade, um rótulo impreciso que ignora a coexistência — e a influência — de uma condição separada?
Ao analisar as estimativas de herdabilidade, os dados reforçam essa perspectiva. O autismo apresentou hereditariedade de 82%, enquanto a alexitimia chegou a 84% — acima da média de estudos anteriores. Já os sintomas sensoriais demonstraram herdabilidade moderada, cerca de 57%, com participação adicional de fatores ambientais.
Através da modelagem bivariada de gêmeos, a equipe mostrou que, mesmo com uma correlação moderada entre autismo e sintomas sensoriais, essa ligação genética só existia enquanto a alexitimia não era considerada. Após seu controle, a correlação caiu a praticamente zero. Por outro lado, a relação genética entre alexitimia e sintomas sensoriais persistiu, mesmo após o controle para traços autistas. Isso reforça a ideia de que estamos diante de um fator independente, com força genética própria e efeitos clínicos relevantes.
Implicações Para Diagnóstico, Tratamento e a Própria Definição de Autismo
Esses achados colocam em xeque um dos alicerces do diagnóstico moderno do autismo: a inclusão das alterações sensoriais como critério oficial. Se tais sintomas não são causados pelo autismo, mas por um traço que coexiste com ele— e que pode ocorrer em muitas outras condições —, então o próprio conceito de espectro autista precisa ser reavaliado. O risco é claro: diagnósticos mal conduzidos podem confundir causas distintas, levando a tratamentos ineficazes ou até contraproducentes.
Essa distinção é especialmente crítica quando se pensa em intervenções personalizadas. Por exemplo, intervenções baseadas em integração sensorial podem ser úteis para alguns pacientes, mas não para todos. Se a alexitimia impulsionar os sintomas, estratégias que melhoram a percepção emocional — como o treinamento interoceptivo — tendem a ser mais eficazes.
O estudo também levanta uma pergunta importante, ainda sem resposta definitiva: é possível reduzir a alexitimia? E, caso seja, isso reduziria também os sintomas sensoriais? Se a resposta for sim, estaríamos diante de uma oportunidade terapêutica com potencial de beneficiar não apenas pessoas autistas, mas também pacientes com múltiplas outras condições psiquiátricas.
Limites do Estudo e Próximos Passos Para Compreender o Papel da Alexitimia
Apesar da força metodológica do estudo — especialmente o uso do modelo de gêmeos e de instrumentos validados como o Short Sensory Profile e a Observer Alexithymia Scale — há limitações a considerar. Primeiro, os dados foram obtidos por relato parental, o que pode introduzir vieses, sobretudo quando o mesmo responsável respondeu por dois filhos. Segundo, apenas um componente da alexitimia foi avaliado: o da dificuldade de insight emocional. Outros aspectos, como pensamento concretista e empobrecimento imaginativo, ficaram de fora.
Além disso, o modelo estatístico não permitiu testar a influência bidirecional entre os traços. Ou seja, não foi possível verificar se controlar geneticamente a influência da alexitimia sobre o autismo também diminuiria a correlação entre autismo e sensorialidade. Isso faz com que as conclusões, embora robustas, ainda sejam consideradas provisórias.
Mesmo assim, o impacto teórico e clínico das descobertas é evidente. O estudo, assinado por Isabel Yorke, Jennifer Murphy, Fruhling Rijsdijk, Emma Colvert, Stephanie Lietz, Francesca Happé e Geoffrey Bird, inaugura uma nova etapa na compreensão da complexidade diagnóstica do espectro autista. E, talvez mais importante, amplia o campo de visão da psiquiatria ao reconhecer que nem tudo que parece autismo é, de fato, autismo.