A lateralização da dopamina desempenha um papel crucial na formação da personalidade, um dos elementos que tornam cada indivíduo único. Isso porque acabam funcionando como uma espécie de ‘impressão digital psicológica’ moldada por complexas interações neuroquímicas. Dessa forma, imagine que sua personalidade é como uma mistura única de cores numa paleta. Neste cenário cada cor representa um aspecto diferente do seu comportamento e modo de ver o mundo.
Teoria de Cloninger
De acordo com a teoria de Cloninger, um dos principais estudiosos da personalidade, cores básicas chamadas de temperamentos compõem essa paleta que herdamos. Além disso, podemos mensurar essas características por meio de escalas psicométricas, como o Inventário de Temperamento e Caráter (TCI).
Cloninger identificou quatro principais “cores” ou domínios temperamentais: a evitação de dano, a dependência de recompensa, a busca por novidade e a persistência. Esses domínios não apenas definem como reagimos ao mundo, mas também estão intrinsecamente ligados à forma como nosso cérebro produz e utiliza substâncias químicas. Nos referimos a essas substâncias como neurotransmissores, sendo a dopamina uma das mais importantes.
No entanto, como essas essas “cores” influenciam um comportamento específico como por exemplo o transtorno de jogo? Esse transtorno representa uma forma de vício comportamental que vem ganhando cada vez mais atenção. Funciona como um labirinto dentro do cérebro, com diferentes caminhos que podem levar uma pessoa a perder o controle sobre seus impulsos. Regiões do cérebro como o córtex pré-frontal e os gânglios da base, áreas responsáveis por tomar decisões e controlar o comportamento, funcionam de forma diferente em pessoas com esse transtorno. E assim como em outros vícios, como o alcoolismo, o transtorno de jogo pode se manifestar de várias maneiras, de uma busca incessante por novas sensações até um medo constante de perdas.
Lateralização da Dopamina Influencia Personalidade
Um dos pontos mais intrigantes é como a dopamina, o “hormônio do prazer”, influencia a personalidade e o comportamento desses indivíduos. No entanto, entender essa relação é como montar um quebra-cabeça com peças que nem sempre se encaixam perfeitamente. Isso se deve, em parte, às diferentes técnicas de imagem usadas nos estudos e às variadas populações de pacientes analisadas. Um componente-chave desse quebra-cabeça é o transportador de dopamina (DAT), que atua como um ‘filtro’ regulando a quantidade de dopamina disponível no cérebro. A redução na disponibilidade de DAT pode estar associada ao transtorno de jogo. Assim, sugerindo que alterações na distribuição e lateralização desse transportador podem influenciar tanto as preferências por recompensas quanto a propensão a assumir riscos.
Embora já saibamos que assimetrias significativas de DAT estão relacionadas à Doença de Parkinson, o papel dessas assimetrias em pessoas sem Parkinson, especialmente em relação ao transtorno de jogo, ainda não havia sido explorado. Um estudo recente examinou as possíveis conexões entre a assimetria do DAT no cérebro e os traços de personalidade em pacientes com transtorno de jogo.
No contexto do estudo, “assimetria” refere-se à diferença na atividade ou na quantidade de um determinado componente, como o transportador de dopamina (DAT), entre os dois hemisférios do cérebro. Ou seja, em vez de haver uma distribuição equilibrada do DAT entre o lado esquerdo e o lado direito do cérebro, há uma diferença. Assim, um dos lados acaba apresentando mais ou menos DAT do que o outro. Essa diferença pode influenciar como o cérebro processa informações e, consequentemente, pode impactar comportamentos e traços de personalidade, como a propensão ao jogo compulsivo.
Selecionando Participantes Viciados em Jogos de Azar
Neste estudo, os pesquisadores incluíram dez homens que estavam buscando tratamento para o transtorno de jogo (GD). Os homens tinham entre 18 e 65 anos, diagnóstico confirmado de GD, e haviam buscado tratamento dentro de dois meses anteriores ao início do estudo. Além disso, para garantir a integridade dos resultados, os pesquisadores excluíram potenciais participantes que usavam medicamentos que interferissem na ligação com o transportador de dopamina (DAT). Ademais, aqueles com deficiência mental ou com um QI documentado igual ou inferior a 70, além de indivíduos com condições médicas ou neurológicas significativas ou instáveis também foram excluídos. Por fim, os pesquisadores excluíram os pacientes com distúrbios psiquiátricos graves. Como por exemplo esquizofrenia, transtorno bipolar ou depressão, e aqueles com histórico de abuso de álcool ou substâncias.
Testes Psicométricos
Os participantes realizaram os seguintes testes psicométricos nos participantes:
- Escala Obsessivo-Compulsiva de Yale-Brown modificada para GD (PG-YBOCS): Avalia a gravidade dos sintomas de jogo (comportamentos e impulsos) nos últimos 7 dias. Utiliza escores que variam de subclínico a extremo.
- Escala de Avaliação da Gravidade do Jogo (G-SAS): Uma escala de autoavaliação de 12 itens que mede a gravidade dos sintomas de jogo e mudanças durante o tratamento. Sendo baseada nos últimos 7 dias.
- Entrevista de Retrospectiva Temporal (TLFB) para jogos: Uma entrevista estruturada para avaliar informações quantitativas sobre os comportamentos de jogo.
- Inventário de Temperamento e Caráter de Cloninger (TCI): Avalia quatro dimensões do temperamento (evitação de dano, busca por novidade, dependência de recompensa e persistência) e três dimensões de caráter (autodirecionamento, cooperatividade e autotranscendência). O temperamento é influenciado por fatores genéticos, enquanto o caráter é moldado por fatores ambientais.
Rastreando a Lateralização da Dopamina
Os pesquisadores seguiram procedimentos estabelecidos em estudos anteriores para realizar a imagem SPECT, uma técnica de imagem que permite visualizar a atividade cerebral. Primeiro, um marcador radioativo chamado 123I-FP-CIT foi administrado intravenosamente nos participantes. Este marcador se liga especificamente ao transportador de dopamina (DAT). Após a administração, os participantes aguardaram 180 minutos para garantir que o marcador se espalhasse adequadamente pelo cérebro.
Em seguida, as imagens foram capturadas usando uma câmera gama de alta resolução, capaz de registrar a distribuição do marcador no cérebro. Com essas imagens, os pesquisadores puderam analisar e reconstruir diferentes cortes do cérebro, focando nas regiões do caudado e do putâmen, que são áreas essenciais para o controle do comportamento e do movimento. Além disso, os pesquisadores também avaliaram a assimetria do DAT, ou seja, a diferença na atividade entre os hemisférios esquerdo e direito do cérebro.
Resultados
As pontuações médias nas escalas que medem a gravidade dos sintomas de jogo, os pesquisadores observaram que os participantes pontuaram, em média, 25.0 e 21.8, respectivamente. Esses valores sugerem que os sintomas de jogo variam de moderados a severos, o que é consistente com a busca ativa por tratamento.
Os pesquisadores observaram que há uma correlação positiva entre as pontuações de busca por novidade (NS) e os índices de lateralidade e assimetria no caudado. Simplificando, quanto maior a tendência de um indivíduo a buscar novas experiências e estímulos (uma característica associada à impulsividade e à busca por risco), mais assimétrico é o funcionamento desta parte do cérebro. Essa região do cérebro está ligada à tomada de decisões e à antecipação de recompensas. Porém, parece funcionar de forma diferente em pessoas que possuem uma forte inclinação para buscar novidades. Assim, isso pode explicar em parte o motivo que essas pessoas apresentam maior vulnerabilidade ao vício.
Por outro lado, os pesquisadores encontraram uma correlação negativa entre as pontuações de evitação de dano (HA) e os índices de lateralidade e assimetria no putâmen. Isso significa que indivíduos que têm uma tendência elevada a evitar riscos e perigos, geralmente sujeitos mais cautelosos, apresentam uma menor assimetria no putâmen. O putâmen é uma região crucial para o controle motor e o aprendizado de hábitos. Assim, essa menor assimetria pode refletir uma resposta cerebral mais equilibrada em situações que exigem cautela.
Hemisférios Cerebrais: Especialização em Emoções e Comportamentos
Os hemisférios cerebrais parecem ter funções distintas no controle emocional e comportamental. Por exemplo, o hemisfério esquerdo é frequentemente associado à extroversão e à sociabilidade. Por outro lado, o direito está mais ligado à evitação de dano, uma característica marcada por preocupação, inibição social e medo de incertezas. Essas descobertas nos permitem entender melhor como a ativação desigual dos hemisférios pode contribuir para as diferenças individuais na personalidade. Assim, permitindo compreender as consequências de vulnerabilidade ao transtorno de jogo.
O Papel da Lateralização da Dopamina
A lateralização do DAT no caudado e putâmen pode ser vista como uma manifestação da assimetria hemisférica na percepção emocional e na orientação comportamental. Ao ativa mais um lado do cérebro do que o outro, pode levar a um aumento nos níveis de dopamina em regiões específicas, o que, por sua vez, influencia os traços de personalidade. Por exemplo, a ativação persistente do hemisfério esquerdo pode intensificar comportamentos impulsivos, enquanto a ativação do hemisfério direito pode reforçar a evitação de riscos.
As diferenças na atividade dopaminérgica entre os hemisférios podem ter implicações significativas para o tratamento de distúrbios como o transtorno de jogo. Assim, as terapias de neuromodulação, que já demonstraram ser eficazes na modulação dos níveis de dopamina e do DAT em regiões estriatais, podem ser ainda mais personalizadas com base no perfil neurobiológico de cada paciente. Isso abre portas para o desenvolvimento de tratamentos mais direcionados e eficazes, que levem em conta as diferenças individuais na lateralização da Dopamina e nos traços temperamentais.
Terapias de neuromodulação
Terapias de neuromodulação são tratamentos médicos que envolvem a modificação da atividade elétrica no sistema nervoso para tratar diversas condições neurológicas e psiquiátricas. Essas terapias utilizam dispositivos ou técnicas que estimulam diretamente os nervos ou o cérebro, alterando os padrões de atividade neural para aliviar sintomas ou melhorar a função neurológica.
Existem diferentes tipos de neuromodulação, incluindo:
- Estimulação Cerebral Profunda (DBS): implantasse um dispositivo cirurgicamente no cérebro para enviar impulsos elétricos a áreas específicas, frequentemente usado no tratamento de doenças como o Parkinson, tremores essenciais e distúrbios psiquiátricos resistentes a outras formas de tratamento.
- Estimulação Magnética Transcraniana (TMS): aplica-se um campo magnético na superfície do crânio para estimular áreas específicas do cérebro, geralmente utilizado para tratar depressão, especialmente em casos que não respondem bem aos medicamentos.
- Estimulação do Nervo Vago (VNS): Um dispositivo implantado no corpo estimula o nervo vago, o que pode ajudar a controlar epilepsia ou depressão resistente a tratamentos.
- Estimulação da Medula Espinhal: coloca-se eletrodos na medula espinhal para interromper sinais de dor, sendo frequentemente usados para tratar dor crônica.
Essas terapias têm o potencial de modificar a atividade neural de maneira direcionada, oferecendo alternativas ou complementos a tratamentos convencionais, como medicamentos ou terapias psicológicas. A neuromodulação pode ser particularmente útil em casos onde outros tratamentos não foram eficazes. Assim, proporcionando alívio em condições debilitantes e melhorando a qualidade de vida dos pacientes.
Lateralização da Dopamina Abre Novas Portas Para Entender o Comportamento Humano
O que mais essas assimetrias no cérebro podem estar nos revelando sobre quem somos? Se a ligação do DAT no caudado e no putâmen realmente influencia como reagimos ao perigo ou como buscamos novas sensações, quais outros aspectos de nossa personalidade e comportamento estão sendo silenciosamente moldados pela química cerebral? Estamos à beira de entender como nuances aparentemente pequenas na biologia do cérebro podem ter impactos profundos em nossa vida diária e em nossas vulnerabilidades.
Poderíamos estar subestimando o poder dos neurotransmissores em definir não apenas nossos comportamentos mais instintivos, mas também nossa capacidade de tomar decisões críticas? Se essas correlações entre a lateralização da dopamina e os traços temperamentais se confirmarem, como isso pode transformar nossa abordagem ao tratamento de vícios e distúrbios de comportamento? E mais importante, como podemos usar esse conhecimento para prevenir que vulnerabilidades biológicas se transformem em desafios debilitantes?
Este estudo abre um novo capítulo em nossa compreensão do transtorno de jogo, sugerindo que, para tratar eficazmente esses distúrbios, não podemos mais ignorar as intricadas conexões entre o cérebro e a personalidade. Estamos preparados para aceitar que algo tão fundamental quanto a lateralização da dopamina pode modular nossas inclinações mais íntimas, nossos medos e impulsos? Se sim, a medicina e a psicologia precisarão avançar lado a lado, explorando não apenas como tratar, mas como compreender profundamente a raiz de nossos comportamentos mais complexos.
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