A cafeĆna Ć© a substĆ¢ncia psicoativa mais consumida no mundo, onipresente em cafĆ©s, chĆ”s, refrigerantes e chocolates. Apesar de sua reputação como aliada da produtividade, seu impacto real sobre a atividade cerebral durante o sono ainda era um mistĆ©rio. Um estudo publicado na Communications Biology contesta a visĆ£o simplista de que cafeĆna apenas dificulta o sono: a substĆ¢ncia altera de modo complexo a dinĆ¢mica neural noturna, especialmente em adultos jovens e durante fases especĆficas do sono.
O experimento recrutou 40 adultos saudĆ”veis, que passaram duas noites em laboratório ā uma após ingestĆ£o de 200 mg de cafeĆna (equivalente a duas xĆcaras de cafĆ©), outra após placebo, sem que soubessem qual era qual. O objetivo era entender como a cafeĆna afeta a complexidade elĆ©trica do cĆ©rebro, especialmente durante o sono nĆ£o-REM, conhecido por suas funƧƵes restauradoras e regulatórias.
Com auxĆlio de eletroencefalograma (EEG), os pesquisadores analisaram mĆ©tricas clĆ”ssicas de frequĆŖncia, mas tambĆ©m Ćndices sofisticados de entropia, compressibilidade e correlação temporal. Sendo estes, marcadores de quĆ£o imprevisĆvel, rico e āinformativoā estĆ” o cĆ©rebro. Os resultados mostram que a cafeĆna induz um estado neural mais dinĆ¢mico e excitĆ”vel. Assim, aproximando o cĆ©rebro adormecido do chamado āestado crĆticoā que favorece plasticidade e processamento intenso de informaƧƵes, normalmente associado Ć vigĆlia.
MudanƧas No Sono: Mais Complexidade, Menos Profundidade
A cafeĆna aumentou diversos indicadores de entropia e complexidade, alĆ©m de achatar o chamado āespectro aperiodicoā do EEG ā sinal de maior excitação neural. Tais efeitos foram especialmente marcantes durante o sono nĆ£o-REM, fase essencial para reparo celular, consolidação de memória e regulação emocional. O fenĆ“meno tambĆ©m apareceu, mas de forma mais discreta, em regiƵes visuais durante o sono REM, etapa ligada aos sonhos.
O aumento da complexidade cerebral sugere que, mesmo dormindo, o cĆ©rebro sob efeito de cafeĆna se mantĆ©m em um regime mais caótico e responsivo. Isso pode prejudicar a profundidade e qualidade restauradora do sono, tornando-o mais superficial e potencialmente menos eficiente para funƧƵes cognitivas. Em modelos de aprendizado de mĆ”quina, medidas de entropia chegaram a distinguir com 75% de precisĆ£o quem havia ingerido cafeĆna ou placebo.
O estudo tambĆ©m revelou que adultos mais jovens (20ā27 anos) apresentam respostas cerebrais mais intensas Ć cafeĆna durante o sono REM do que adultos de meia-idade (41ā58 anos). Isso provavelmente ocorre por possuĆrem mais receptores de adenosina ā molĆ©cula bloqueada pela cafeĆna. Isso pode explicar por que jovens tendem a sofrer mais com o sono agitado após cafeĆna noturna.
Implicações Para Saúde, Limitações E Novos Caminhos Para Pesquisa
Os achados destacam que dormir sob efeito de cafeĆna nĆ£o Ć© equivalente a um sono natural: a substĆ¢ncia āadormeceā o corpo, mas mantĆ©m a mente em estado de alerta funcional, alterando arquitetura e dinĆ¢micas neurais profundas. Isso pode ter impacto direto em processos que dependem de um sono profundo e ordenado, como consolidação de memória, regulação emocional e aprendizado. O estudo sugere cautela no consumo noturno de cafeĆna, especialmente entre adultos jovens e em pessoas sensĆveis ao sono fragmentado.
Entre as limitações, os autores reconhecem que o experimento envolveu apenas adultos saudÔveis e não avalia efeitos crÓnicos ou em populações com distúrbios do sono, depressão ou doenças neurodegenerativas. Além disso, o estudo não mediu diretamente neurotransmissores ou receptores cerebrais, deixando em aberto detalhes do mecanismo biológico envolvido.
Futuros trabalhos poderĆ£o explorar se e como essas mudanƧas afetam habilidades cognitivas, emoƧƵes e saĆŗde a longo prazo ā e se hĆ” diferenƧas em pacientes com insĆ“nia, depressĆ£o ou Alzheimer. Os dados ainda reforƧam a necessidade de individualização nas recomendaƧƵes sobre consumo de cafeĆna e higiene do sono.
O artigo, āCaffeine induces age-dependent increases in brain complexity and criticality during sleepā, assinado por Philipp Thƶlke e equipe da Universidade de Montreal, amplia a compreensĆ£o sobre como hĆ”bitos cotidianos moldam, de forma profunda, o funcionamento noturno do cĆ©rebro humano.