O artigo publicado em Trends in Ecology & Evolution lança luz sobre a evolução cerebral em aves e mamíferos. O estudo parte de uma amostragem comparativa que envolve dezenas de espécies distribuídas geograficamente pelo mundo. Dessa forma, abrangendo desde pequenos roedores até grandes primatas, bem como uma variedade de aves terrestres e rapinantes.
Os pesquisadores buscaram entender não apenas as diferenças morfológicas tradicionais — representadas pela massa e volume encefálicos —, mas também quantificar o número de neurônios em estruturas-chave como o pallium (neocortex em mamíferos) e o cerebelo. Para isso, foram utilizados dados de formatos variados: medidas de volume craniano obtidas por tomografia e métodos histológicos de “isotropic fractionator” para contagem de neurônios, reunindo resultados de estudos anteriores e também de trabalhos originais conduzidos pelos autores.
A abrangência amostral inclui clados notáveis como Primatas, Rodentia e Accipitriformes, além de subgrupos de Passeriformes (corvídeos e psitacídeos). O esforço amostral envolveu colaborações internacionais, com coletas de cérebros de museus de história natural. Por exemplo, amostras de corvos e papagaios em coleções da Europa e América do Norte, e indivíduos em cativeiro para análises neuroanatômicas mais precisas. Isso confere ao estudo um caráter pioneiro, pois compara homogeneamente métricas de massa e de número de neurônios em mais de vinte ordens taxonômicas relacionadas à cognição complexa.
Métricas para Mensurar Evolução Cerebral: Massa e Volume x Contagem de Neurônios
Tradicionalmente, estudos de evolução cerebral concentram-se em medidas de massa ou volume encefálico, considerando o endocrânio como proxy confiável. Nesse escopo, nota-se que o pallium (ou neocortex) responde por 42% a 76% do volume total do cérebro em aves e 37% a 82% em mamíferos, sendo o principal impulsionador do tamanho absoluto do cérebro . Observações de pesquisadores como Tsuboi et al. (2018) e Ksepka et al. (2020) apontam que, ao comparar aves e mamíferos com répteis, o aumento volumétrico do pallium e do cerebelo representa o fenômeno central na encefalização.
Entretanto, quando utilizamos a técnica do “isotropic fractionator” para contar neurônios, emergem padrões surpreendentemente diferentes. Embora o pallium continue sendo volumetricamente maior do que o cerebelo, a contagem revela que, em todos os mamíferos (incluindo primatas como Macaca mulatta e Homo sapiens) e na maioria das aves, a maioria dos neurônios está concentrada no cerebelo, superando o número no pallium (até 97,5% das células em algumas espécies).
Por outro lado, clados como Psittaciformes (papagaios), Corvidae (corvídeos) e Strigiformes (corujas) exibem mais neurônios no pallium do que no cerebelo, invertendo a tendência geral. Essa descoberta mostra que aves cognitivamente avançadas, como corvos e papagaios, seguiram um caminho evolutivo distinto daquele observado em mamíferos de grande cérebro, indicando que volume e número de células podem evoluir de maneira desacoplada em diferentes grupos taxonômicos .
Evidências de Evolução Cerebral Convergente em Aves e Mamíferos
Os autores destacam que, apesar de aves e mamíferos terem divergido há aproximadamente 300 milhões de anos, ambos os grupos demonstram aumentos notáveis no tamanho cerebral em suas respectivas linhagens, associados a complexidade cognitiva. Baseado em dados de expressões de receptores de neurotransmissores em áreas associativas — como mesopallium e nidopallium em aves, e córtex associativo em primatas —, observa-se correlação direta entre maior expressão de receptores de glutamato e habilidades de resolução de problemas em tentilhões, por exemplo, mas também confluências em primatas.
Os levantamentos de Lefebvre et al. indicam que papagaios e corvos possuem capacidades cognitivas quase equiparáveis às de primatas. Ele se baseia na predominância de neurônios palliais e volume ampliado de áreas como mesopallium e nidopallium, implicando convergência funcional. Pois aquela noção de que apenas mamíferos teriam “hardware” para cognição complexa é refutada. Pois, quando corvídeos demonstram uso de ferramentas e papagaios resolvem problemas sofisticados usando representações mentais.
Mesmo linhagens de aves com cérebros volumetricamente grandes — como Accipitriformes (águias e gaviões) e Falconiformes (falcões) — exibem predomínio de neurônios no cerebelo. Portanto, assemelhando-se aos mamíferos de grande cérebro, mas ainda assim não atingem os níveis complexos de papagaios e corvos. Essa diversidade de estratégias aponta que evolução convergente não significa copiar exatamente o mesmo arranjo cerebral. Mas sim atingir, por diferentes vias anatômicas e celulares, complexidade cognitiva avançada.
Distribuições Clado-Específicas de Neurônios
Ao calcular a razão entre neurônios palliais e cerebelares, nota-se que todos os mamíferos (incluindo elefantes e moles) têm mais neurônios no cerebelo (razão inferior a 1), enquanto aves apresentam casos acima e abaixo de 1, dependendo da ordem . Dentro de Passeriformes, por exemplo, Corvidae (corvos e gaios) e Psittaciformes (papagaios) estão acima da linha de igualdade. Assim, indicando mais neurônios no pallium, contrastando com Cacatuoidea e grandes rapinantes que continuam abaixo.
Surpreendentemente, mesmo dentro de Land Birds (Telluraves), ordens como Palaeognathae (avestruzes, emas) e Anseriformes (patos, gansos), que não são conhecidas pela cognição inovadora, mantêm tendência similar à dos mamíferos, com predominância de neurônios cerebelares. Por outro lado, falconiformes como a caracara estriada (Phalcoboenus australis) revelam exceção notável dentro de Raptores. Pois apresentam mais neurônios palliais, equiparando-se a corvídeos e papagaios em termos de composição neuronal.
Esse padrão ressalta que a evolução do cérebro não seguiu um único roteiro. Algumas aves de rapina desenvolveram cérebros grandes voltados ao controle motor e voo, refletido em mais neurônios no cerebelo. Por outro lado, corvídeos e papagaios evoluíram cérebros com ênfase cognitiva no pallium. Nos mamíferos, contudo, grandes cérebros estão quase sempre ligados a cerebelos densamente povoados de neurônios, como se a “via da coordenação sensório-motora” fosse prioritária para inteligência.
O Papel do Cerebelo na Cognicão e suas Divergências
Diversas hipóteses defendem que o cerebelo desempenha papel crucial na cognição — não apenas no controle motor mas também em funções preditivas e de aprendizado. Em mamíferos, há circuitos fechados entre córtex e cerebelo que sustentam funções executivas e preditivas. Tais circuitos já foram documentados em primatas e humanos e apresentam núcleos como o dentado conectando cerebelo ao tálamo e ao córtex.
Entretanto, em aves, as conexões entre pallium e cerebelo formam circuitos majoritariamente feedforward, sem loops de feedback equivalentes. As projeções palliais em aves alcançam apenas parte do cerebelo (por exemplo, o oculomotor cerebelo), enquanto em mamíferos os núcleos pontinos inervam grande extensão do cerebelo. Não existe em aves estrutura homóloga ao núcleo dentado mamífero, o que sugere modos distintos de integração sensorimotora e cognitiva.
Curiosamente, mesmo papeis atribuídos ao cerebelo — como coordenação sensório-motora para uso de ferramentas — não se refletem em aves inovadoras: New Caledonian crows, por exemplo, não têm cerebelos ampliados, mas ressaltam o mesopallium. Já falcões exibem foliação cerebelar extensa compatível com voo predatório, mas apenas a caracara estriada, que forrageia no solo, apresenta predominância de neurônios palliais . Isso provoca polêmica: se o cerebelo fosse central para a cognição avançada, por que aves tão inovadoras focam no pallium? Esse ponto questiona a sobrevalorização do cerebelo em mamíferos quando generalizamos conceitos para todos os vertebrados.
Questões em Aberto sobre a Evolução Cerebral e Direções Futuras
Entre as perguntas que permanecem urgentes, está a identificação de quantas vezes o pallium com alta densidade neuronal evoluiu independentemente em Telluraves ou em clados avianos distantes. A amostragem atual, embora robusta, ainda carece de representantes de grupos como Piciformes (pica-paus) e Bucerotiformes (carcarás), para mapear mais precisamente a origem de cérebros sofisticados.
Outro ponto crítico é compreender se o acoplamento entre neurônios palliais e cerebelares observado em mamíferos é exclusivo ou aparece esporadicamente em vertebrados não mamíferos. Dessa forma, exigindo análises filogenéticas profundas que comparem todas as linhagens de vertebrados “modelos” e não modelos . Além disso, estudos de conectividade funcional (por exemplo, ressonância magnética funcional em aves durante tarefas cognitivas) poderiam elucidar como o cerebelo contribui para a cognição não motora em aves, algo praticamente inexplorado até o momento.